20.2.20

A minha angustiante liberdade



«Não ensino a ninguém como viver a sua religião ou as suas convicções mais íntimas. Quanto a isso, sempre defendi a maior das liberdades. É por isso que me oponho ao laicismo mais radical que tenha visões uniformizadoras da República. O papel do Estado fica-se, nesta matéria, pelo dever de defender os cidadãos que estejam limitados na sua liberdade (conceito sempre difícil de definir e sempre em disputa política) pelas escolhas de terceiros e em transmitir valores que podem ou não ser aceites por cada indivíduo. Não ensino a ninguém e, por isso, exijo igual humildade dos outros.

Sou ateu e posso dizer que uma das desvantagens de o ser é a crença de que a minha vida me pertence. Sim, desvantagem. Não há nada mais solitário e angustiante do que esta liberdade. Vivo com ela sem qualquer certeza de que seja o que me convém. Pelo contrário, tenho a crescente convicção que a religião, qualquer coisa que me ligue ao passado e ao futuro e ao transcendente, me daria muito mais conforto. Por isso, não olho de forma sobranceira para os que encontraram a paz no engano, na fé ou na descoberta - chamem-lhe o que quiserem – de que há um sentido da sua vida que os transcende. Olho com um misto de estranheza e inveja. Mas as coisas são como são e a fé dos outros não se força em mim.

O respeito que tenho pelas convicções dos outros é o respeito que exijo para as minhas convicções, na medida em que as deles e as minhas não afetem a liberdade de ninguém. E a regulamentação da eutanásia tem tudo a ver com isto. Tem cada ser vivente todo o direito em acreditar que a vida não lhes pertence e não lhe cabe decidir que há um momento em que ela já não está a ser vivida. Têm outros, religiosos ou não, o direito a pensar o oposto. Têm uns o direito de recusarem participar no ato misericordioso de pôr fim a um sofrimento sem fim nem sentido para quem o sofre e outros de considerarem que esse gesto é a derradeira e mais generosa das compaixões. Importante é que os valores dos envolvidos sejam respeitados.

É claro que tudo isto tem de ser temperado. Nenhum valor é absoluto. Nem o da vida – por isso rejeitamos, ao contrário do que sucedia no passado, a obstinação terapêutica –, nem a liberdade – por isso pomos limites. A eutanásia só pode acontecer quando o doente está perante um sofrimento intolerável, um estado terminal, uma doença grave incurável. E tem de haver uma intervenção externa enquadrada na lei para que se garanta que a escolha é consciente, livre, informada e reiterada. No respeito pela liberdade e as convicções de todos. O menos mau possível numa vida em sociedade. Permitindo que eu viva a minha angustiante e solitária liberdade sem afetar as invejáveis convicções dos outros. O voto desta quinta-feira não afetará as convicções de ninguém. A proibição da eutanásia afeta as minhas.»

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