«No início dos anos 70, uma mulher de 78 anos, residente na pequena localidade rural de Noordwolde, no norte da Holanda, sofreu um derrame cerebral. Ficou surda, paralisada de um lado, não conseguia falar sempre que queria e estava presa à cadeira no lar de idosos onde teve de ser internada - de outra forma caía ou para a frente ou para os lados. Em 1971, essa mulher pediu à filha, médica de medicina geral na mesma cidade, que a ajudasse a morrer. E Truus Postma injetou na mãe 200 miligramas de morfina, um bocadinho mais de morfina do que habitualmente. Os donos do lar contactaram a polícia e a decisão tomada pelos Postma (o seu marido, Andreas, também era médico, e defensor da eutanásia) chegou da pequena cidade a todo o mundo.
“Eu conheci a Truus. A mãe dela estava extremamente doente, estava muito debilitada e há muito tempo que tinha feito a filha prometer que se ficasse acamada, sem conseguir fazer absolutamente nada, sem poder comunicar, sem noção de onde estava, a ajudava a morrer. Truus apenas cumpriu essa promessa”, conta ao Expresso Rob Jonquiere, que se tornou presidente da primeira sociedade pró-eutanásia da Holanda, A Associação da Eutanásia Voluntária da Holanda, nascida em 1973, ano em que Truss Postma foi chamada a tribunal. Afinal ela tinha assassinado a mãe, segundo a lei vigente na altura. Hoje Jonquiere é diretor da Federação Mundial da Associações do Direito a morrer (WFRtDS), da qual faz parte a organização portuguesa Direito a Morrer com Dignidade.
Truss Postma não foi ilibada, isso não seria possível, mas foi condenada a uma semana de prisão, com pena suspensa, e ficou “à experiência” como médica outros 12 meses, apesar de isso na realidade não interferir na sua prática médica. “Foi a forma que os juízes encontraram de mostrar que não estavam totalmente contra o que ela fez. Mas tinham de, de alguma forma, mostrar que ela agiu contra a lei. Na sentença ficou logo patente a base da lei que haveria de ser adotada mais de três décadas depois”.
O caso teve repercussões gigantescas - e cristalizou um conceito que ainda é utilizado na defesa da eutanásia na Holanda. “Criou-se o conceito de etnosfera entre médico e doente, uma coisa inviolável, uma decisão mútua e discutida que ainda hoje, ao contrário do que as pessoas pensam, se mantém. Nenhum médico propõe uma injeção letal sem estudar o assunto e jamais a eutanásia aparece como sugestão do médico”, diz Jonquiere. Jornais de todo o mundo quiseram saber o que pensavam os holandeses, os seus médicos e as pessoas que tinham um dia sido pacientes do casal Postma. “O que aconteceu foi que muito mais gente do que anteriormente pensávamos estava de acordo com o que a Truus fez. Nos jornais e na rua as pessoas diziam coisas como: ‘quem me dera ter uma médica como ela’”, continua. Truss morreu a 24 de dezembro de 2014, com 87 anos.
Em resposta ao alvoroço mediático, o casal escreveu uma carta aberta, que mencionava as cartas pessoais que tinham recebido de pessoas de todo o país: “Das muitas cartas que nos chegaram, o que fica claro é que há muita gente a sofrer de forma inumana sem qualquer perspetiva de melhoria. Tem de haver uma outra forma”, lê-se num artigo académico de Tony Sheldon, médico norte-americano, sobre o caso.
No início dos anos 80, um outro médico aceita terminar a vida de um paciente. Entrega-se de imediato à polícia e também é ilibado, mais ou menos nas mesmas condições. O Ministério da Saúde holandês decide que não pode tratar este procedimento como sucessivos casos isolados e pede um estudo anónimo junto de todos os médicos do país. “Confirmou-se o que Truss já me tinha dito, que muita gente o praticava, mediante condições restritas e em segredo”. O processo legislativo começou aí, mas demorou mais de 20 anos até ser um assunto político.
Rob Jonquiere considera que o caso da médica que aceitou eutanasiar a mãe mostrou que a sociedade holandesa como um todo “estava culturalmente disposta a aceitar esta forma de morrer - a aceitação das enfermidades é ‘normal’ para nós”.
Mas pede atenção para que não se confunda a questão recentemente levantada pela esquerda libertária holandesa (principalmente o partido D66) de que toda a gente com mais de 70 anos deveria ter acesso a um comprimido para poder acabar com a vida com o alargamento da lei da eutanásia: “Os oponentes dizem que é um problema, que é uma rampa deslizante, mas não é porque não é eutanásia, não é administrado pelo médico e não tem nada a ver com a relação inquebrável entre médico e doente”.
Ainda não se sabem exatamente os contornos da lei que será proposta mas fala-se em treinar pessoas que não sejam médicos e que possam passar a tal receita do comprimido para evitar que os médicos possam dizer que não - muitos diriam. “Isso é um mundo que já não tem nada a ver com a nossa lei da eutanásia, não se misture. Se isso chegar a ser aceite, será uma lei à parte”, diz.
Na experiência que adquiriu ao longo de décadas na prática da medicina, Jonquiere garante que a vida de um doente que sabe que pode escolher a altura de morrer melhora muito depois de essa certeza lhe ser dada. “Eles pensam: ‘Se isto se tornar muito mau eu posso morrer’. E a sua qualidade de vida melhora bastante, porque esse medo da forma como se morre, da agonia, desaparece. Só um terço das pessoas que já têm a eutanásia assegurada vão para a frente com ela. As pessoas não querem morrer”.»
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