22.2.20

A falta que a vergonha faz



«Se há coisa que o episódio Marega não foi é lamentável. Pelo contrário, o maliano, ao abandonar o campo, devolveu alguma vergonha à sociedade portuguesa e a vergonha faz falta para que sejamos capazes de nos mantermos civilizados. Para já, nos estádios de futebol.

Não partilho grandes otimismos antropológicos, pelo que reconheço que o processo civilizacional depende sempre mais da nossa capacidade coletiva de controlar impulsos negativos (à cabeça a violência e a propensão hobbesiana para nos matarmos uns aos outros, mas, naturalmente, também o racismo) do que propriamente de uma convergência — que não devemos, contudo, parar de buscar — em torno de princípios morais partilhados. Norbert Elias, sociólogo de origem alemã, explicou, no ano de 1939, o “processo civilizacional” precisamente através da forma como as pessoas aprenderam a controlar os seus impulsos. Por isso mesmo, as nossas sociedades dependem de tabus, limites e vergonha para operarem. São os mecanismos sociais de repressão que nos tornam civilizados.

Luso-tropicalismo e brandos costumes à parte, Portugal é um país com mais racismo do que gostamos de reconhecer o que aliás é sugerido pelos inquéritos europeus e comprovado quotidianamente. Concedo, aliás, que o que tem feito diferença para a sociedade portuguesa é a narrativa sobre a nossa capacidade de integração e de aculturação que, apesar de tudo, inibe o racismo institucional.

A questão está aí: a vergonha de se ser racista está a dissipar-se — como a vergonha em relação a muitas outras posições moralmente inaceitáveis. Ao ponto de, pela primeira vez em 45 anos de democracia, termos uma representação parlamentar declaradamente racista. Há poucos sinais tão significativos de que perdemos coletivamente a vergonha do que termos dado, pelo sufrágio, reconhecimento institucional e, depois, consequência desse primeiro passo, maior reconhecimento mediático a um oportunista que cavalga o racismo.

O problema não está tanto nos estádios de futebol — até porque vamos ao futebol para “nos portarmos mal”, em busca de um espaço onde autocontrolamos menos as emoções. O drama é outro: a partir do mundo do futebol está-se a disseminar uma cultura em que se perde a vergonha que limita(va) comportamentos que não tolerávamos socialmente. Sinal dos tempos, hoje o futebol — território privilegiado das emoções — ocupa de forma quase hegemónica o prime-time dos canais noticiosos (num paradoxo com consequências previsíveis) e, acima de tudo, normalizámos o insulto como mecanismo de argumentação no espaço público. A crescente expressão de racismo — que era tabu — é apenas representação de uma tendência mais vasta. Devemos estar, por isso, agradecidos a um emigrante da África francófona. Com o seu gesto corajoso, veio devolver alguma vergonha à sociedade portuguesa. E a falta que ela nos faz.»

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