4.8.24

O umbigo de Paris

 


«A cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris não correu bem; e a culpa não foi da chuva, esse álibi de costas largas. A sondagem em que 85% dos franceses consideram a cerimónia um sucesso revela apenas que gostam de si próprios, o que já sabíamos. Aliás, nesse estrito sentido, a sessão de abertura cumpriu.

Para dirigir o espetáculo foi contratado um ator e encenador de teatro, Timothy Jolly, e a realização foi entregue à Olympic Broadcasting Services, uma filial do Comité Olímpico, que faz todas as transmissões há mais de 20 anos, em estádios. Jolly rodeou-se de quatro outros criativos, em áreas complementares como dança e guarda-roupa. Ao todo, foram cinco os grandes responsáveis, unidos na vontade de “celebrar a diversidade”. Imagino que nas suas reuniões tenham passado o tempo a dizer uns aos outros “Mais ça c'est génial!” (mas isso é genial), sem que ninguém de seguida lhes editasse as ideias. A sessão de abertura acabou por se caracterizar por um barroquismo com pretensões futuristas, ambicionando surtir pasmo e arrebatamento. Houve mesmo um comentador que, ao ver uma estátua dourada a emergir do solo, narra com entusiasmo: “E agora vemos Olympe de Gouges, uma mulher muito importante na Revolução Francesa.” Em certa medida sim, foi suficientemente importante para lhe cortarem a cabeça.

Acima de tudo, a realização não mostrou ter léxico para dialogar com a escala da cidade. Bastaria o conhecimento mínimo de algumas regras elementares de realização, como o raccord de direção, para que o espectador se sentisse, no mínimo, orientado no espaço. Entradas e saídas de campo seriam exequíveis de forma elegante e barata com movimentos de câmara planificados: teria sido escusada a quantidade de elevadores e alçapões para fazer emergir estátuas e pessoas. Sei que o orçamento foi ultrapassado, mas era investir menos em alçapões e pagar a uma boa equipa de realização.

Porque o problema foi também narrativo: os criadores engendraram uma personagem original, com a cara coberta por uma espécie de máscara de esgrima, um vulto negro e expedito que galga a cidade, num parkour incansável. É a personagem que cola toda a emaranhada narrativa, e nós, como espectadores, investimos no seu mistério. Vem-se a revelar que o grande desígnio desta figura, depois de toda a aventura, era entregar a tocha a Zidane, num gesto pífio, e ir-se embora. Se porventura tirasse a máscara e fosse uma mulher, isso teria significado: equalité. Mas não: “Toma lá a tocha, Zidane, que me cansei para aqui chegar.”

Por outro lado, representar a diversidade através de uma profusão de cores e formas, tipo cada fatiota cada melro, também não foi o modo mais eloquente de figurar pluralidade. Na imagem, o conceito de diferença emerge de forma muito mais clara em presença de padrões que se quebram do que perante uma diversidade total. O espetáculo esqueceu-se de que era para ser gravado e emitido, que não era teatro de rua. Esta sessão de abertura sofreu de uma grave falha processual: ninguém trabalhou a sério a sua transposição para televisão.

Mas, como sempre, nem tudo foi mau, que para absolutos bastou a corte do Rei Sol. Quando anoiteceu, a sessão melhorou muito, talvez porque a iluminação pontual destacou as zonas de interesse e as câmaras passaram a saber para onde apontar. Atletas vestidos com um equipamento branco ágil e bonito fizeram caminho até à base do grande balão dourado que aguardava a tocha, com sede de fogo. A base incendiou-se e o balão voou. E desde esse dia que paira sobre Paris, como um umbigo da cidade — narcisa, potente, belíssima.»


0 comments: