«Afeganistão: lentamente vamo-nos esquecer, é sempre assim. Esmagadas pelo arbítrio, amputadas da voz, da liberdade, da igualdade, do acesso às decisões de poder. Elas não podem. Porque não nasceram homens. Tão-somente.
Completamente absurdo, desumano. Em nome de "Deus", seres humanos completamente iguais, física e espiritualmente, são segregados porque nasceram ou assumiram uma qualquer diferença.
O Afeganistão? Não apenas. Um mundo moldado por um "Deus", ou deuses, onde o poder físico ancestral se cristalizou, ao longo dos séculos, num mandato imutável: a capacidade exclusiva de, apenas eles, interpretarem Deus (ver o extraordinário texto de ontem do padre Anselmo Borges neste jornal).
Estamos aqui: Deus só se deixa interpretar, de forma oficial, nas cúpulas de poder religioso, apenas por cabeças que incluem cromossomas XY. Como poderá Ele ter a liberdade/ousadia de dizer que não é assim?
O mundo mudou. Somos contra o racismo, a xenofobia, a desigualdade. Mas aceitamos que o poder mais fático do mundo não seja alvo de uma resposta social clara: é inaceitável a segregação religiosa.
Pensemos adiante: uma mulher Papa? Nem Francisco consegue um primeiro passo - ordenar mulheres. Não tem força para tal, como se viu no balão de ensaio chamado Amazónia. Eles mandam no Vaticano, em Riade ou Teerão, no ortodoxismo católico e em quase todo o lado, à exceção dos anglo-saxónicos protestantes. Não está nos seus horizontes olharem para a nova realidade do planeta: homens e mulheres iguais. Almas iguais, incorpóreas. Sem X nem Y.
O poder destas ordens reinantes espalha-se sempre pelos interstícios do invisível. As pessoas mais respeitáveis da sociedade fazem parte do sistema e não ousam questionar-se, umas mulheres aceitam o status quo, outras afastam-se ou submetem-se. Exato: a submissão. A tal homilia que a Conferência Episcopal Portuguesa recomenda de três em três anos - para que elas não ousem. Regozijem-se no privilégio da diferença. Aceitem ser o que são. Inferiores nos direitos. Porque está "escrito". E elas aceitaram, século após século.
Século XXI. Mudar? Lutar? Talvez as mulheres estejam a desistir de Deus.
Mulheres na História rebelaram-se e foram mortas. Ou trouxeram nova luz e foram santas. Mas não há meio termo. É entre a loucura inaceitável da voz de Deus na voz de uma mulher ou o silêncio sepulcral de uma Humanidade que amputa uma possível primavera existencial, mais repleta de fraternidade e solidariedade, através da máquina de ajuda aos pobres e excluídos.
No Afeganistão elas vão morrer para ser livres. No Ocidente desperdiçamos a liberdade de lutar pela igualdade. A religião parece não valer o esforço. As sacrossantas igrejas expulsam-nas antes mesmo de acederem à porta - não as deixam entrar como iguais. Eternamente Marias Madalenas. Até ao dia em que não fique pedra sobre pedra. Tantos monumentos vazios, tanta voz assassinada.
Em Cabul constituir-se-á a Resistência. Elas vão derrotar os talibãs. O tempo joga a seu favor. Elas já são da era da comunicação e unirão desesperos. Não estão sós e precisam dos nossos sinais de apoio. As trevas são pesadas, mas um pequeno raio de luz derrota toda uma noite. No Ocidente, no entanto, pode nem sequer chegar a haver uma tentativa de mudar as trevas de um certo cristianismo, o que é em si mesmo histórico. A segunda queda de Roma já faz parte da agenda.
Uma saída: seria tempo de se considerar intolerável que as mulheres sejam audiência passiva e ornamentadoras de santos. Chega de iconoclastia misógina. Deus também pode ser mulher.»
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1 comments:
Trata-se de um texto espantoso que mostra que há assuntos que, por mais que se fale deles nunca se tornam banais. Banal é por vezes a forma como são abordados.
nelson anjos
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