«Encaro as eleições, todas elas, com igual entusiasmo. É um tempo de debate, de aferição de políticas, de algum rebuliço, que depois termina com um resultado que quase não importa, não fosse a tendência da direita em privatizar instituições estratégicas comuns mal chega ao poder. Mas a luta continua e o ato eleitoral é, para todos os efeitos, um reboot, de pendor refrescante.
No entanto, vivo com um certo desalento o presente ato eleitoral. Posso estar a sentir o peso de uma derrota antecipada da minha área política, claramente prevista em todas as sondagens. Pode também dever-se a uma falta de espaço geral para a boa disposição, nos tempos sinistros que atravessamos. Mas talvez a razão principal seja bem mais prosaica: uma campanha feia mata a alegria de qualquer um.
Desde logo, estas eleições nem deviam estar a acontecer. Chegámos até aqui arrastados, através de sucessivos twists narrativos, escancarados, rapazolas e mal controlados que se quiseram fazer passar por alta estratégia. Já a tática da campanha em si traz novidades e sugestões sólidas do que se pode daqui em diante fazer em política. A saber, (1 aproveitar o facto de se estar no poder para o usar em benefício privado e/ou partidário (2 aderir sem respaldo científico a ideias e perceçōes e agir de acordo (3 fazer alarde de atos governamentais regulares, com vista à obtenção de votos (4 fazer campanha pensando exclusivamente nos eleitores dos outros, tipo lucro (5 vestir pele de cordeiro reformista, apesar do mais canino conservadorismo (6 trazer para a rua e para as televisões o que compete às instituições, numa espécie de poder popular de bolso (7 quando em crise e sem saber o que pensar face à complexidade das coisas, ir buscar ao sótão as ideias mortas que por lá estão arrumadas e tentar reanimá-las (8 encontrar formas de dizer “não, é não” na teoria e “sim, sim” na prática (9 meter todas as forças de oposição no mesmo saco e acusá-las de conluio sempre que discordam de nós, ainda que por razões completamente distintas (10 não tomar nenhuma decisão importante sem consultar a agência de comunicação contratada para deliberar sobre todos os pontos acima.
O que vivemos, na realidade, é um efeito de privatização da esfera política: tudo é comunicação, e o que se discute — e como se discute — é decidido em agências que trabalham os atos políticos com as mesmas diretivas com que lançam campanhas para vender automóveis. Tudo se resume à lógica alastrada da publicidade — mercado e política são um mesmo território. Esta atitude, este regime existencial tipo CEO, abre caminho ao assalto mercantil dos grandes conglomerados empresariais que está em curso e que consiste na exploração e monetização geral de todos e cada um de nós. Perdida nas ruelas do curto prazo, a direita que se candidata a estas eleições não vislumbra nada disto no horizonte do mundo. Antes pelo contrário, faz contas estranhamente otimistas, pueris e perigosas.
Os anarquistas da segunda metade do século XIX, com quem simpatizo particularmente, opunham-se à ditadura do proletariado, perguntando-se como poderia uma sociedade mais justa emergir de um regime autoritário. Partiam da premissa de que os fins que se querem alcançar são fundamentalmente moldados pelos meios que se empregam para lá chegar. Podemos hoje perguntar-nos que tipo de governo será aquele que decorre da feiura desta campanha. Acima de tudo, uma direita que falha em se distinguir do seu extremo, não mostra estar à altura dos combates incontornáveis do futuro próximo.»
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