17.5.25

Jovens que emigram: um bonito tema para o dia de reflexão

 


«Todos os anos temos esta parvoíce de ir à procura da lei que diz — nunca ninguém se lembra do quê exactamente — que no dia de reflexão é proibido falar de política nos media.

Quando a encontro, fico sempre espantada: os jornalistas são mesmo mais papistas do que o Papa.

Nenhuma lei proíbe “falar de política” no dia de reflexão. Há frases sobre o tema, mas nada diz isso. Encontrei quatro:

— “É proibido fazer propaganda por qualquer meio na véspera e no dia da eleição”, diz a Comissão Nacional de Eleições (CNE) nas Perguntas Frequentes: eventos na véspera e no dia de eleição;

— “A disseminação de conteúdos de campanha eleitoral nos dias de reflexão e da correspondente eleição” é proibida, diz o Regime Jurídico da Cobertura Jornalística em Período Eleitoral (Lei n.º 72-A/2015, 23 de Julho);

— “Quem no dia da votação ou no anterior fizer propaganda eleitoral por qualquer meio é punido com pena de multa não inferior a 100 dias”, diz o artigo 177.º da Lei Eleitoral das Autarquias Locais;

— “As notícias ou quaisquer outros elementos de reportagem que divulguem o sentido de voto de algum eleitor ou os resultados do apuramento só podem ser difundidos ou publicados após o encerramento de todas as assembleias de voto”, diz a mesma lei no artigo 127.º.

Os jornalistas relatam, descrevem, verificam, analisam e comentam a vida política, os partidos e as suas máquinas de propaganda. Se André Ventura tiver hoje uma terceira crise de saúde, esse facto deve ser omitido porque seria propaganda ou relato do estado de saúde do líder de um partido? O enredo à volta deste “proibido fazer propaganda” é grande, mas a regra tem que ver com acções de campanha directas, como comícios ou vídeos a apelar ao voto. Não tem que ver com os jornalistas, mas com os partidos.

Já a “disseminação” tem que ver com jornalistas. Mas repare: a seguir a “disseminação”, a lei diz “de conteúdos de campanha eleitoral”. Não sei como é que isto se tornou a ideia generalizada de que a lei nos impede de falar de política. É claro que podemos falar de imigração, habitação, educação e todos os "ãos" que nos preocupam sem que isso viole a lei. A lei não proíbe discutir política, proíbe discutir a campanha.

Um passo à frente: mesmo que citássemos um partido — reproduzindo “conteúdos de campanha” —, que sentido faz esta proibição hoje, quando tudo está online e o voto antecipado é permitido a qualquer cidadão?

Este ano, dos 333 mil inscritos para votar antecipadamente, votaram 94,45%, um recorde. Mais de 300 mil pessoas votaram a 11 de Maio, em plena campanha eleitoral. O seu voto foi menos livre e reflectido do que o de quem vai votar este domingo? Claro que não.

Se não há problema que 300 mil pessoas votem durante a campanha, quando tudo à sua volta é feito para o influenciar, porque é que há problema em influenciar os que votam depois da campanha?

Este paternalismo seria compreensível, vá, em 1979, quando sabíamos pouco de democracia, não havia Internet e a lei eleitoral só permitia o voto antecipado a quem estivesse no estrangeiro, doente ou preso.

Se este silêncio imposto pela lei é esquisito e anacrónico na era digital, é particularmente esquisito e anacrónico desde 2018, quando a lei alargou o voto antecipado a qualquer cidadão. Há sete anos que podemos votar durante a campanha sem termos de apresentar qualquer justificação. Aparecemos, votamos, está feito.

Falta o último cenário previsto na lei: é proibido divulgar “o sentido de voto de algum eleitor”. Se eu disser que, em 2024, Quim Barreiros actuou no comício de encerramento da campanha do Chega em Lisboa; Rui Massena assinou o manifesto de apoio à AD; Sérgio Godinho e Jorge Palma apoiaram o Bloco de Esquerda; Lena d’Água votou no PS e o rapper Valete esteve pela CDU, como o Expresso noticiou no ano passado, estou a violar a lei? E se fizer o mesmo levantamento para 2025?

Hoje, quando for à praça comprar flores frescas, vou ver os cartazes de campanha na rua e, no meu telefone, vou ver tudo o que quiser, incluindo as notícias dos jornais e a propaganda dos partidos. Mas a CNE tem medo de tudo o que possa “influenciar os cidadãos eleitores”. Que ideia mais pueril. O legislador olha para nós como se fôssemos uns seres frágeis, metidos numa cápsula hermética e isolada, cuidado, não nos influenciem.

Claro que dizer “qualquer coisa” é um exagero. Continuo sem saber porque é que é repetido, dia-sim-dia-sim, da esquerda à direita, antes e durante a campanha, há um ano e meio sem interrupção, que uma das tragédias de Portugal, suposta prova de que o nosso país é uma desgraça, é os jovens emigrarem “muito”, “como nunca”, “mais do que alguma vez”.

Só a análise dos mil milhões de linhas — literal — dos últimos ficheiros da OCDE nos vai dar um retrato geral completo. É mais difícil do que parece. Primeiro, porque cada país recolhe os dados à sua maneira.

Portugal diz que x pessoas emigraram no ano y com base numa pergunta que faz no Inquérito ao Emprego, qualquer coisa como “alguém do seu agregado familiar emigrou no último ano?”. Há países que recolhem os dados desta forma, como a Alemanha. Mas o Reino Unido pergunta no aeroporto, também a partir de uma amostra, “está a sair porque vai emigrar?” ou “está a entrar porque emigrou?”. Basta mergulhar no documento Perfil das populações imigrantes no século XXI — Dados dos países da OCDE sobre a metodologia para perceber a dificuldade em comparar países, fazer rankings internacionais e dizer o país A está melhor do que o país B: as excepções e diferenças de métodos usados na OCDE enchem 16 páginas.

Há um ano e meio que ouço o repetido lamento dos “30% dos jovens nascidos em Portugal que vivem fora do país”, como se isso fosse uma novidade ou uma anomalia na nossa História.

Isto quando pelo menos desde 2000 que sabemos que 70% dos que emigram de Portugal são jovens. É o que mostram as estatísticas e é o que nos diz o bom senso. Sempre foi assim e é assim em todo o lado e em todas as épocas. Não são os velhos que emigram, são os jovens. Aqui, na Holanda, no Congo e na China. E há mais jovens licenciados a emigrar? Claro que sim. Se o país tem mais licenciados, é natural que haja mais licenciados a emigrar. O mesmo se passa à nossa volta. Também os outros têm cada vez mais licenciados a sair. Nós saímos para o Reino Unido, o Reino Unido sai para os EUA e para a Austrália. Para ganhar mais dinheiro, para viver uma aventura, para trabalhar no seu nicho profissional.

O mais insólito é que o número nem é rigoroso. O mágico “30%” saiu de uma entrevista na qual foi dito que os jovens que vivem no estrangeiro são mais de 20%, talvez 25%, no máximo 30% — mas foi o 30% que ficou.

Falo dos jovens que emigram, mas podia falar de mil outras coisas. O dia da reflexão bem podia ser transformado em Dia da Verificação de Mitos.»


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