28.10.19

O mal maior



«O aumento do número de governantes não é um bom sinal, mas, por si só, também diz pouco sobre a natureza do Executivo. Entre 70 membros do Governo, o problema radica mais nas sobreposições e títulos semelhantes — que chegam a ser caricatos — sem que se entenda bem onde está a fronteira de competências (se é que existe). A lei orgânica pode deslindar muitos dos mistérios, mas quer as experiências passadas quer, muito importante, a natureza humana mostram que as tensões entre ministros que cotutelam áreas de políticas e, também, as tensões entre secretários de Estado que cotutelam organismos do mesmo ministério são entraves à eficácia nas respostas, mesmo quando os desafios são transversais. O conservadorismo na estrutura orgânica dos Governos é mesmo um valor em si.

Só que talvez não seja esse o mal maior do Governo que hoje toma posse. E, paradoxalmente, o número elevado de governantes até pode ser revelador de dificuldades de recrutamento de ministros e secretários de Estado fora da esfera próxima do primeiro-ministro do momento. Um problema sério e que tenderá a agravar-se.

Em 70 membros do Governo há perfis muito diversificados: políticos profissionais (que numa democracia institucionalizada deveriam ser a maioria), académicos com especialização na área que vão tutelar, altos quadros da administração com anos de gestão pública, poucas pessoas vindas da atividade privada e um excesso de juristas — muitos aliás sem qualquer experiência prévia no sector onde vão assumir responsabilidades.

Mas, hoje, ao contrário de um passado não muito distante, fica-se com a sensação de que uma parte significativa dos governantes assume funções porque a base de recrutamento é cada vez mais limitada. Por motivos diferentes, a disponibilidade de muitas pessoas ponderarem sequer assumir responsabilidades governativas é nula. Esse é que é mesmo o mal maior da formação de governos.

E não é difícil perceber os motivos por que isso acontece: com o lento processo de erosão das capacidades instaladas na administração pública, os membros do Governo passaram a concentrar demasiadas obrigações, substituindo-se em muitos casos a serviços depauperados, tendo um quotidiano diabólico e um trabalho hercúleo. Se a isto juntarmos um escrutínio público muitas vezes desmesurado e disparatado, que coexiste com o desprestígio do exercício de funções públicas e remunerações que, mesmo num país com salários muito exíguos, são demasiado baixas (até na comparação com os parlamentares), percebe-se o pouco interesse que suscita a atividade governativa.

É por isso que, entre os 70 governantes que hoje tomam posse, há mesmo muitos que estão a abdicar de remunerações mais generosas e de uma vida profissional e familiar bem menos exigente, em nome do serviço público. Convém que tenhamos isso presente.»

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