«Não falta quem diga que a dicotomia esquerda-direita está ultrapassada. Curiosamente, em quase todas as análises políticas ela continua a funcionar como a mais operacional. Isto não quer dizer que ela esgote (ou alguma vez tenha esgotado) a compreensão da política. Quer apenas dizer que estas categorias sobrevivem há dois séculos porque arrumam as coisas em torno do elemento mais perene do confronto político: a desigualdade e o privilégio na distribuição dos recursos.
Há, sempre houve, outras clivagens relevantes. Uma das mais evidentes é o conservadorismo-liberalismo. Os termos são usados, neste caso, de forma grosseira. Poderíamos dizer, para ser mais rigorosos, que a divisão é torno das liberdades individuais. Mas mesmo aqui há diferenças entre a esquerda e a direita. Não são liberais ou conservadoras pelos mesmos motivos e da mesma maneira. Porque olham para a liberdade e para o individuo de forma diferente, não lhes sendo indiferente as condicionantes sociais e económicas em que essa liberdade individual se exerce. E é por isso que esta dicotomia raramente pode ser mais do que complementar. Quando assim não é, acontecem absurdos como achar que a Iniciativa Liberal pode disputar espaço político com o Bloco de Esquerda. Equívocos que qualquer análise minimamente cuidada dos resultados das últimas eleições, olhando para mesas de voto, destrói. Porque mesmo quando coincidem, as posições da IL e do BE baseiam-se em pressupostos muito diferentes. E os eleitores sabem isso.
Seja como for, o olhar concentrado na dicotomia esquerda-direita é tão (e justificadamente) prevalecente que poucos deram por um facto saído destas eleições: que este é, socorrendo-me da tal definição grosseira, o Parlamento mais liberal nos costumes que já existiu em Portugal. E isso ficou evidente quando o Bloco de Esquerda anunciou que irá reapresentar o seu projeto de lei sobre morte assistida. A eutanásia é um bom tema para o aferir desta clivagem, porque ter o poder sobre a sua própria vida é a primeira e a última de todas as liberdades. Apesar do tema ser muitíssimo complexo, há nele menor interferência de fatores exógenos ao indivíduo e maior clareza nos conceitos do que quando falamos, por exemplo, do aborto. A forma de fazer as coisas pode ser muito difícil – até mais difícil do que na interrupção voluntária da gravidez –, mas o conceito de liberdade individual é relativamente claro.
Os vários projetos para a regulamentação da eutanásia – todos eles bastante cautelosos – foram chumbados com os votos contra do PSD (tirando seis deputados), CDS e PCP. Do lado oposto estiveram PS, BE, PEV e PAN. O projeto que esteve mais próximo da aprovação foi o do PS (mais por razões políticas do que de conteúdo), e contou com 110 votos a favor, 115 contra e quatro abstenções. O novo Parlamento será tão diferente neste tipo de temas que não só se inverterá esta tendência como isso acontecerá de forma radical: fazendo contas simples, uma diferença de cinco votos contra a eutanásia poderá passar para uma diferença de quarenta a favor da eutanásia. PS, BE, PAN, PEV, Livre e Iniciativa Liberal, que juntos têm 135 deputados, são favoráveis à legalização da eutanásia. PSD, PCP, CDS e Chega!, que serão contra, têm 95. Não conto com os votos trânsfugas do PSD ou do PS, mas recordo que Rui Rio foi uma voz bastante clara em defesa da despenalização, dizendo mesmo, há pouco mais de um ano, que era “um imperativo do Estado”.
Ninguém poderá dizer, desta vez, que o tema não foi discutido na sociedade portuguesa. Começou a ser intensamente discutido no início da legislatura anterior. Foram quatro anos de debate e, nestas eleições, todos conheciam as posições dos vários atores políticos sobre o tema. Perante isto, a eutanásia será seguramente legalizada nesta legislatura. O debate seguinte, pelo menos entre os que defendem este caminho, é como isso se fará. São questões técnicas que envolvem questões éticas. Neste texto, não tratarei nem das razões pelas quais defendo que não devemos confundir o direito à vida com o dever de viver, mesmo quando isso já só representa o prolongar de tortura atroz, nem das várias soluções legislativas possíveis. Esse é o debate que continuaremos a fazer. Apenas sublinho esta mudança no panorama político nacional. Que provavelmente não se ficará pela eutanásia.»
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