«Há uma verdadeira ponte aérea institucional de Lisboa a caminho do Catar. A coisa não se faz por menos e vão três. Presidente da República, Presidente da Assembleia da República e primeiro-ministro. Mas os caros leitores percebem porquê? Será o gás? Será o petróleo? Serão as duas coisas? As três primeiras figuras institucionais do país e do Estado vão ao Catar fazer o quê? Apoiar a selecção no Mundial de Futebol! OK, mas é preciso uma representação tão dimensionada para apoiar a selecção portuguesa de futebol? Dada a circunstância do país que é, e que parece ter tudo no seu radar menos os direitos humanos, era necessário este rodopio institucional? Um discreto secretário de Estado do Desporto não chegaria? Acham mesmo que é preciso uma representação tão avantajada para apoiar a selecção? E não há outras formas de apoio?
O presidente norte-americano, Joe Biden, fez uma imaginativa e divertida chamada vídeo com toda a equipa de futebol norte-americana. Desejou-lhes boa sorte, toda a equipa bateu palmas e o apoio institucional cumpriu-se na maravilha. E os tweets tão usados noutras situações e com tanta eficácia mediática não seriam uma boa solução para poupar umas horas de voo ao Falcon e fazer boa gestão dos nossos impostos? Ou será que as nossas três primeiras instituições políticas rivalizam entre si e vão ao Catar em busca daquele minuto de presença nos Telejornais, associando, assim, a política ao futebol, uma receita tão eficaz na projecção mediática.
E, depois, os caros leitores acham que ir a França apoiar a selecção é o mesmo que ir ao Catar como deixou entender o primeiro-ministro? A França é um país democrático, onde existe liberdade de imprensa. Sindicatos que defendem os interesses dos trabalhadores, tribunais independentes, um país onde as mulheres têm, praticamente, os mesmos direitos que os homens. Nada disto acontece no Catar. Não há liberdade de imprensa. As mulheres para estudarem, trabalharem, viajarem, casarem, precisam de autorização do pai, do marido, do irmão. As relações sexuais fora do casamento são penalizadas com penas de prisão até sete anos. O Catar é o país onde o Ministério do Interior mandou prender gays, lésbicas, bissexuais, transgéneros. O Catar é o país onde quem "espalhar notícias falsas" ou " conteúdos que "violem valores ou princípios sociais" pode ser condenado a três anos de prisão e 140 mil euros de multa. O Catar é o país onde os estádios de futebol foram construídos com um custo da vida de milhares de trabalhadores que pereceram por excesso de calor ou falta de condições de trabalho, com passaportes apreendidos e, por vezes, vencimentos em atraso? Será, então, que as nossas primeiras figuras institucionais podem ir ao Catar apoiar a selecção nacional sem levar em linha de conta o perfil do país para onde viajam.
Esquecem que representam 10 milhões de portugueses, onde a esmagadora maioria deles, estou certo, está contra o que, política e sociologicamente, se passa no Catar. Em nome de um apoio à selecção varre-se para debaixo do tapete tudo o que é o edifício político de Doha, tão distante dos princípios do 25 de Abril a que tantas vezes recorremos. Onde está afinal a afirmação nacional da nossa identidade de valores e princípios democráticos que nos regem?
Estiveram bem o BE e a Iniciativa Liberal, o PAN e o Livre, os quatro deputados socialistas e os deputados do PSD (abstenção) que se manifestaram contra uma presença institucional no Catar.
Os valores democráticos que estão na base da nossa vivência como país não servem apenas para serem usados nas datas comemorativas e para pôr o cravo na lapela.
E não é necessária uma preocupação excessiva com os apoios à selecção portuguesa de futebol. Ela tem sempre o apoio dos dez milhões de portugueses que, na sua generosidade, não deixarão de estar ao seu lado, seja qual for o resultado que consiga no Mundial. É nas esplanadas e nos cafés de todas as cidades portuguesas que vai estar o maior apoio à selecção.
E este é, seguramente, o apoio que todos os jogadores mais anseiam.»
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