20.11.22

O “interesse nacional” das chuteiras



 

O Mundial começa hoje, mas Portugal só joga no dia 24 e é no dia 21 que os partidos votam para permitirem, ou não, a ida do PR ao Qatar. Mas PS, PSD e Chega já disseram que votarão a favor e não creio, nem espero, que o partido que detém a maioria absoluta mude de opinião e impeça que Marcelo, Costa e Santos Silva nos representem no #mundialdavergonha. (comentário meu)

«Depois da polémica com as declarações sobre a pedofilia na Igreja, o Presidente da República voltou a estragar com uma frase uma declaração que no seu conjunto é uma corajosa condenação das violações dos direitos humanos no Qatar. Mas, ainda assim, apesar de toda a polémica e de toda a indignação, Marcelo não abdica de ir ao país que condena. Por uma razão essencial: o “interesse nacional”.

Ora, por muito que se indague e se condescenda, não se vislumbra qual é o interesse nacional que o Presidente, o primeiro-ministro e o presidente da Assembleia da República hão-de defender nas bancadas de um estádio de futebol. Joga-se ali o futuro da economia? Não. Garante-se ou reforça-se ali a soberania nacional? Não. Consegue-se ali uma maior relevância de Portugal no concerto das nações, ainda que sejam as do Golfo Pérsico? Não. Onde estará então o “interesse nacional” que o Presidente da República vislumbra para justificar a sua visita a um país repugnante pela forma como trata as mulheres, as crianças, os homossexuais ou os emigrantes?

Estando em causa um presidente dos afectos, a resposta fica mais fácil de encontrar. Marcelo vai ao Qatar, porque durante 90 minutos as emoções de milhões de portugueses vão estar lá no lugar onde ele vê e quer ser visto. Não há nesta preocupação problema algum. Marcelo esteve na Hungria a puxar pela selecção, por exemplo, e essa sua vontade de partilhar com a grande maioria do país o apoio às cores nacionais é, no mínimo, compreensível. Desta vez, porém, é diferente. Para poder apoiar a selecção, o Presidente vai ter de, como ele próprio disse, “esquecer isso”.

É o “isso”, um Mundial iniciado com a venalidade e construído à custa da exploração até à morte de milhares de pessoas que tem de ser confrontado com o suposto “interesse nacional”. Um humanista e um democrata, como é sem dúvida Marcelo, deveria assumir que a melhor forma de defender Portugal aos olhos do mundo era não ir e dizer porque não vai. Não o fazendo, é pôr Portugal na condição de uma “pátria de chuteiras”, na genial definição de Nélson Rodrigues. Não interessa nada ao país ser visto assim.

O futebol é apenas um jogo tantas vezes usado como uma cortina para desviar as atenções do país do essencial. Não é a ciência, a cultura, a civilidade, o patriotismo, a decência, a responsabilidade ou o espírito de iniciativa. É tantas vezes apenas um soporífero para iludir com alegrias efémeras a realidade. Dizer que o apoio à selecção nacional é do “interesse nacional” é não apenas um erro; é, por isso, também um perigo.»

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