1.11.21

Eu sou como estes edifícios

 


«Dois amigos. Ele, um rapaz da periferia. Ela, mulher aposentada. Falam-me, em momentos diferentes, das fachadas da Lisboa pombalina. “Isso tudo aqui, esses prédios, faz-me pele de galinha. Mete respeito”, diz-me ele, subimos a Rua Nova do Almada. “Respeito ou medo?”, pergunto. Desvia o olhar e não responde. Mais tarde, sentados numa esplanada no Chiado, explicará que não se sente dali. O seu país é o bairro de onde sai pouco, nas franjas da cidade. Um passeio na Baixa é uma ida ao estrangeiro.

Olha por cima do ombro, inquieto, como se, a qualquer momento, alguém lhe viesse dizer que desapareça. Perante a sua expressão de desconforto, os modos hesitantes, é irónico imaginar que a sua figura pudesse ser ameaçadora para alguém. Quem visse nele uma ameaça talvez não imaginasse que era ele quem se sentia acossado pela paisagem. Quantas cidades existem numa cidade? O centro de Lisboa é, para muitos dos que nasceram na cidade, um lugar hostil, ao qual não sentem pertencer, embora não exista um mapa que contenha o perímetro no qual nos sentimos acolhidos, ou que defina o ponto além do qual nos sentimos sem pé.

À mesa da cozinha, uma amiga recorda o momento mais triste da sua vida. É a Lisboa dos anos da troika, e perdera tudo. Subia a Avenida Fontes Pereira de Melo quando estacou frente aos prédios. “Por fora, a fachada estava intacta. Por dentro, estava tudo escalavrado. Eu ia ali na rua, parei, e pensei: eu sou como estes edifícios. Sabes, nunca ninguém me conheceu. Ninguém me conhece.” As fachadas eram mulheres como ela, intactas por fora, vazias, despejadas, escavacadas por dentro, mulheres a quem só restava, como ponto de honra, o seu lugar na avenida, orgulhosas e destruídas, bonitas por fora, nada por dentro. Os empreiteiros haviam-nas poupado à demolição, talvez porque a fachada é a última coisa numa mulher que se destrói. Obra embargada, um dia encheriam de carne o interior destruído. Mas, como mulher desfeita pela vida, a segunda história não apaga a primeira.

Caminho de memória por Lisboa e vejo nos edifícios pessoas — amigas, inimigas, compassivas, odientas, hospitaleiras, hostis. Lembram-me pessoas, os edifícios. A cidade é esta família de pedra e cal, que talvez goste menos de nós do que pensamos, mas que nos habituámos a acreditar que nos estima. Estranho espelho, os edifícios, que magnifica a tragédia ou a apazigua, que nos protege até quando nos fecha a porta, que revela o nosso lugar quando fingimos não o ter já percebido. Talvez as cidades não sejam como famílias, mas à nossa imagem, e o que vemos na cara das fachadas seja o que não queremos ver na nossa cara. Trocava todos os livros do mundo por conhecer os meus amigos.»

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