«Vinte e dois dias depois de ter admitido pela primeira vez a dissolução do Parlamento caso o Orçamento do Estado para 2022 chumbasse, Marcelo Rebelo de Sousa explicou detalhadamente as suas convicções. “A rejeição não ocorreu em qualquer momento. (...) Era um Orçamento especialmente importante, num momento especialmente importante. 2022 era um ano decisivo para a saída duradoura da pandemia e da crise”, disse nesta quinta-feira numa declaração ao país, às 20h a partir do Palácio de Belém e que todos os meios de comunicação social transmitiram em directo.
A quem criticou o seu excesso de intervenção neste processo (o líder do PCP, Jerónimo de Sousa, por exemplo, considerou-a “desadequada”, o constitucionalista Reis Novais considera que “ultrapassou os limites”), o Presidente sublinhou: “Em devido tempo, tentei dizê-lo aos portugueses. (...) Fui sempre muito claro”.
Na verdade, o Presidente da República foi o primeiro a falar na chamada “bomba atómica” quando uma das armas fundamentais do Chefe de Estado num sistema semi-presidencialista é saber gerir os silêncios (normalmente, para conservar maior margem de acção em privado). Marcelo gosta de falar, já se sabe, e precipita-se muitas vezes. Neste caso, apesar da boa argumentação que apresentou agora, Marcelo acabou por partilhar, durante todo este processo, o ónus da crise sem necessidade. O peso da decisão de dissolver uma Assembleia da República por si só já é imenso. Não precisava de aumentar o fardo.
Um Presidente da República, quando dissolve o Parlamento, fica inevitavelmente associado à solução política que se seguirá. Em 2002, Jorge Sampaio abriu caminho à maioria absoluta de direita (o PSD de Durão Barroso fez logo uma coligação com o CDS de Paulo Portas). Em 2005, abriu caminho à maioria absoluta de José Sócrates. Nestes dois casos, as eleições legislativas antecipadas deram origem a governos estáveis.
Então e agora? Vejamos, por exemplo, três cenários possíveis: uma maioria absoluta do PS, uma maioria relativa do PS, uma maioria relativa do PSD. O primeiro parece difícil (a primeira sondagem pós-chumbo do OE, que foi a da TSF/DN/JN, dizia-nos que a maior parte dos portugueses culpa o PS pela crise). O segundo cenário é uma repetição daquilo que já temos: um governo de maioria relativa que precisa de negociar orçamentos para conseguir governar com estabilidade. A questão é negociar com quem? PAN será suficiente? PCP e BE já saltaram fora (o próprio Presidente reconheceu esta quinta-feira no seu discurso que o chumbo do OE mostrou o esgotamento da “geringonça"). O terceiro levanta as mesmas mas dúvidas: a quem se aliará o PSD se a ajuda do parceiro natural, o CDS, e da Iniciativa Liberal não for suficiente?
As incógnitas são grandes (“um berbicacho”, nas palavras de Marcelo), mas sabemos que qualquer que seja a solução governativa ficará colada, para a História, a este Presidente. O social-democrata, que conseguiu fazer um primeiro mandato gerindo exímios equilíbrios, arrisca-se a espalhar-se ao comprido. Ou, sem tanto exagero, arrisca-se a ficar com uma grande amolgadela neste segundo mandato. Na quarta-feira, à saída da reunião do Conselho de Estado que discutiu a dissolução do Parlamento, na Cidadela de Cascais, Marcelo, ao volante, bateu com o seu próprio carro num pilar a fazer marcha-atrás. Foi uma amolgadela ligeira apesar do estrondo. Um prenúncio do que aí virá?»
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