2.1.21

Porque não mudar as empresas para onde o trabalho infantil é legal?




 

«Sim, falta responder à pergunta que Christina Hoff Sommers faz no vídeo There is no gender wage gap e que inspirou esta mini-série de coffee breaks sobre desigualdade salarial: se os salários são a maior despesa das empresas e se as mulheres ganham menos, porque é que as empresas não contratam só mulheres? 

A pergunta é dita como prova de que não existe desigualdade salarial e é repetida no Ocidente como se fosse um slogan publicitário. 

Hoff Sommers sabe que a pergunta é absurda, puramente retórica e que parte de uma premissa irreal. O que está ela a propor? Que as empresas passem a rejeitar todos os candidatos homens e se regresse a um século XIX ao contrário, com os homens em casa e as mulheres no mercado de trabalho? Que as empresas contratem mulheres com menos mérito, menos talento, menos experiência só porque são mulheres e ponham de lado os homens só porque são homens? O mínimo que se pode dizer é que seria sexista, discriminatório e ilegal. Não faz sentido e Hoff Sommers sabe-o muito bem. 

Perguntar porque é que as empresas não contratam só mulheres, disse-me um amigo, “é como perguntar: ‘E se fizéssemos isso no Dia de São Nunca à Tarde ou quando as galinhas tiverem dentes?’”. São perguntas sem resposta. 

Caro leitor, se testar o modelo de Hoff Sommers verá que é evidente quão absurda é a proposta. Façamos a experiência: porque é que as empresas, cujo interesse é terem lucro, não se mudam todas para a China, onde os salários são mais baixos? Tem lógica, mas não faz sentido. Ah, já sei: a China é longe e a mudança exigiria dinheiro. Ok. Então porque é que as empresas, cujo interesse é terem lucro, não se mudam todas para os paraísos fiscais, onde se pagam menos impostos, e há tantas aqui tão perto? 

Outra hipótese, mais próxima ainda da lógica de Sommers: porque é que as empresas, cujo interesse é terem lucro, não se mudam todas para países onde as crianças trabalham e ganham dois dólares por dia? Vale um vídeo, não lhe parece? 

Por favor, imagine um vídeo com cinco minutos, produzido por uma equipa de bons designers, no qual cada uma das ideias seguintes surge escrita num slide ou é dita em voz off: só em África há 72 milhões de crianças que trabalham; em dezenas de países o trabalho infantil é legal e as empresas podem contratar crianças à vontade e não precisam de fazer nada às escondidas; as crianças recebem menos do que os adultos e quando morrem são substituídas por outras crianças; não é sequer preciso pagar segurança social; as crianças são trabalhadores flexíveis — trabalham na agricultura, na indústria e nos serviços — e muitas fazem trabalhos perigosos, sobretudo relacionados com máquinas e químicos; é mesmo prático e as empresas podem escolher à vontade. O que poupavam as empresas! Tantos e tantos euros. E há imensas crianças no mundo. Devem ser burras as empresas. Podiam ir todas para África, para a América Latina ou para a Ásia e poupar milhões, mas teimam em continuar nos EUA e na Europa. Só na Índia há dez milhões de crianças dos cinco aos 14 anos que trabalham. É um mundo de oportunidades. Se preferirem, as empresas podem ficar por aqui. Porque não vão todas as empresas portuguesas para a Bulgária ou para a Moldova? São dois exemplos, mas se procurar, verá que até na Europa a escolha é grande. 

Levemos a lógica de Sommers ao extremo (caro leitor, por favor continue a imaginar um vídeo com bom design): se os salários são a maior despesa das empresas, se as crianças ganham menos do que os adultos e se há 152 milhões de crianças que trabalham, porque é que as empresas não se mudam todas para os países onde o trabalho infantil é comum? Além do mais, 19 milhões delas têm entre 5 e 11 anos, são ainda mais baratas! 

Só há duas explicações possíveis para as empresas não irem para a África, Ásia, América Latina e Europa de Leste, onde poderiam poupar dinheiro contratando crianças: os empresários são tolos ou o trabalho infantil não existe, é um mito. 

Caro leitor: se foi picado pelo bicho Hoff Sommers, experimente aplicar o modelo. O mais provável é concluir que as empresas — felizmente — têm os pés na terra e não são geridas como se estivessem num filme de ficção científica. 

Sommers foi professora de filosofia em duas universidades americanas. Conhece os “juízes indeterminados” de Emmanuel Kant — é quando se nega uma possibilidade sem afirmar uma possibilidade real. Que fique claro: a pergunta do seu vídeo é absurda, irreal e errada do ponto de vista ético, legal e — lamento dizer — até retórico. 

Série “Coffee break” sobre desigualdade salarial: 
  • As mulheres histéricas
  • É difícil explicar que a Terra é redonda
  • O vídeo da professora Hoff Sommers é falso
  • A desigualdade salarial é um mito? 6 argumentos
  • O trabalho e o mito da bravura dos homens
  • Nunca viu desigualdade salarial? A TAP dispensou cinco grávidas

      Bárbara Reis
.

0 comments: