«Os seres humanos são animais de hábitos, esses sinaleiros que nos satisfazem a nostalgia de segurança e organizam o Mundo.
Construir e viver um quotidiano alicerçado em hábitos é uma tentativa de controlar variáveis que receamos ver bailar sem coreografia visada pela (nossa) censura. Mas tal esforço de estruturação não diz só respeito aos comportamentos mais comezinhos, estendemo-lo ao fluir da vida. Inventámos relógios e calendários, pedimos à Natureza que vestisse espartilhos e se o recusa lamentamos que viole a ordem - artificial... - das coisas. Ao longo dos anos fiz essa experiência com o Senhor Augusto em Cantelães, ele olha o horizonte e profetiza o dia seguinte ao arrepio do boletim meteorológico no ecrã do meu telemóvel, se protesto recebo um matreiro "disso não percebo nada". E acerta ele, apoiado na sabedoria de gerações.
Vem aí espartilho clássico - Ano Novo. E um clamor se faz ouvir, ruge apesar das máscaras, não esquece as perdas e danos mas exige um sentimento de alívio, abraços não culpados, parques percorridos bras dessus bras dessous, a pobreza ao menos livre de mais um receio. Depois de uma tempestade assim não nos chega uma bonança tímida, precisamos de uma bebedeira de liberdade, "a nós a Vida Nova!".
Não acontece por milagre. Releio o poema de Ferreira Gullar sobre o Ano Novo: "Meia noite. Fim/de um ano, início/de outro. Olho o céu:/nenhum indício./Olho o céu:/o abismo vence o/olhar. O mesmo/espantoso silêncio/da Via-Láctea feito/um ectoplasma/sobre a minha cabeça:/nada ali indica/ que um ano novo começa./E não começa/nem no céu nem no chão/do planeta:/começa no coração./Começa como a esperança/de vida melhor/que entre os astros/não se escuta/nem se vê/nem pode haver:/que isso é coisa de homem/esse bicho/ estelar/que sonha/(e luta).
A um de Janeiro seremos os mesmos, o Mundo também. Sonhos preguiçosos nada resolverão, é preciso libertar a luta de parênteses e com ela inundar ruas e mentes. Lembrando, agradecidos, os que asseguram o metabolismo básico de uma sociedade que amiúde os destrata. Formigas incansáveis que viajam no porão, alimentam as caldeiras, limpam o casco e o tombadilho, asseguram que as cozinhas não naufragam. (Enquanto as cigarras se miram, autocomplacentes, em espelhos e soundbites nos salões da primeira classe).
Agradeço-lhes. Por exemplo, ao segurança da urbanização, viu-me entrar noite adentro, anónimo por trás de gorro e máscara, e não satisfeito por me ver rodar a chave do prédio exigiu que mostrasse o rosto. "É o meu trabalho", disse, com um sorriso tímido, e desapareceu no escuro. Eu subi. Tranquilo, por alguém velar. E tantos alguéns, dos mais diversos modos, o fazem por aí!»
Obrigado.
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