15.6.25

A crise da habitação está a minar a democracia

 


«1. Em abril deste ano, segundo o Eurostat, éramos na Europa o país com pior acesso à habitação. O fosso da desigualdade habitacional agravou-se e aumentou a desesperança de muitos. A subida constante dos preços proporciona uma especulação desenfreada e grande evasão fiscal. Há muito arrendamento sem contrato e sem recibo e um número crescente de pessoas em novas barracas e alojamentos precários. São sinais de alarme sintomáticos de duas questões de fundo: continuada insuficiência e ineficácia das políticas públicas de habitação; e profundo disfuncionamento do mercado habitacional, que só floresce no segmento de luxo.

2. As grandes linhas da política pública de habitação decorrem do direito à habitação consagrado na Constituição, que comete ao Estado o dever de o garantir a todos. A Lei de Bases da Habitação, de 2019, desenvolveu essas grandes linhas. Passam por quatro tipos de instrumentos: habitação pública, medidas fiscais, subsidiação e regulação. Na promoção pública e até 2018, houve apenas dois programas relevantes: o SAAL, em 1974, para apoiar soluções em bairros precários de todo o país, e o PER, em 1993, para erradicar as barracas nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Nos anos 70 e 80, houve algum apoio público ao setor cooperativo, mas decaiu. O financiamento público centrou-se desde então na bonificação de juros para acesso à casa própria e em subsídios ao arrendamento jovem. Paralelamente, vendeu-se grande parte da habitação pública e lançou-se a cobertura do país com planos diretores municipais pensados para o dobro da população residente. Acreditava-se que o mercado, com apoio da banca, iria satisfazer as necessidades habitacionais. A crise de 2008 e o resgate financeiro de Portugal criaram dificuldades adicionais. Só em 2018 se iniciou a “Nova Geração de Políticas de Habitação”, que inclui o 1.º Direito, o mais ambicioso programa público de habitação até à data.

3. Entretanto, os mercados habitacional, turístico e financeiro mudaram de escala e tornaram-se globais. Cresceram igualmente os movimentos migratórios. A procura de habitação disparou em toda a Europa, alavancada por três fenómenos: a financeirização, que faz da habitação, de preferência desocupada, um mero produto financeiro; a gentrificação, que privilegia a procura externa com maior poder de compra sobre a procura interna; e a imigração de população pobre em demanda de paz e trabalho, alvo prioritário de tráfico ilegal e sobre-exploração habitacional. As consequências conjugadas destes fenómenos entre nós, impulsionadas por políticas públicas erráticas, traduziram-se em subidas estratosféricas e insustentáveis do preço da habitação, tanto na compra como no arrendamento.

4. É inegável que precisamos de aumentar a oferta de habitação pública. Em Portugal, havia em 2021 pouco mais de 120 mil habitações públicas, apenas 2% da habitação existente, um dos mais baixos valores na Europa. A meta de 26 mil habitações novas ou renovadas até 2026, no âmbito do Programa 1.º Direito e financiadas a 100% pelo PRR, já foi reduzida, embora o Governo tenha prometido financiar mais 30 mil habitações até 2030. Mesmo assim, ficaremos longe da média europeia e a menos de metade das 143.283 situações de indignidade habitacional identificadas pelos municípios, referidas no último relatório da Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR.

5. É também inegável que se construiu muito em Portugal desde o 25 de Abril. Será preciso construir mais para aumentar a oferta privada? Certamente que sim, mas não de qualquer maneira e não em todo o lado. Segundo o INE, em 2021 havia 5,9 milhões de habitações para 4,1 milhões de famílias. Desses quase 6 milhões de habitações, 1 milhão e cem mil eram residências secundárias e 723 mil estavam vagas. Dois terços das casas vagas estavam em edifícios habitáveis sem obras, ou apenas com reparações ligeiras, mas só menos de metade delas estava disponível para venda ou arrendamento. Por outras palavras, há em Portugal muita habitação em condições de ser habitada, a maior parte dela privada, que não é mobilizada pelo mercado para satisfazer a procura da população. O mesmo acontece com uma parte substancial dos terrenos classificados como urbanos. Em suma, o nosso grande paradoxo é sermos, ao mesmo tempo, o país com a pior acessibilidade à habitação na Europa e um dos que têm maior superavit de casas face ao número de famílias. Precisamos de perceber porquê, município a município, no litoral, no interior e nas ilhas.

6. Temos de compreender que a oferta de habitação é sempre local e territorialmente limitada, enquanto a procura é global e virtualmente ilimitada. Uma situação destas não é resolúvel sem regulação pública, nacional e europeia. Uma nova estratégia europeia para a habitação acessível está a dar os primeiros passos. A própria Comissão Europeia, no seu relatório de 2025 sobre a situação de Portugal, propôs há poucos dias medidas relevantes. Há muito conhecimento comprovado e muita gente competente, nos vários setores profissionais, na academia e nas autarquias, que deve ser ouvida pelos nossos poderes públicos. Mas falar em regulação, em Portugal, é acordar o fantasma do congelamento de rendas iniciado por Salazar e alargado a todo o país no PREC. O trauma ficou e a resistência à intervenção pública nos preços da habitação é garantida. No entanto, assegurar o funcionamento eficiente dos mercados é uma incumbência constitucional prioritária do Estado, que dela não se pode demitir.

7. A falta de acesso à habitação é uma questão estrutural de enorme gravidade. Os sinais de alerta estão todos à vista. Uma geração inteira está a ser privada de futuro. A coesão social e o desenvolvimento económico estão a ser afetados. É tempo de exigir uma política nacional de habitação consistente, baseada nos recursos e capacidades existentes e nos instrumentos financeiros, fiscais e legais necessários para apoiar quem precisa e penalizar quem abusa. Sem isso não será possível vencer a crise da habitação que está a minar a nossa democracia.»


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