«O Porto, cidade aberta, livre e liberal, assistiu no passado fim-de-semana a um horrível crime de ódio. A tragédia, porque todos os crimes de ódio são uma tragédia, deixou muita gente surpresa, dando conta da distracção ou ignorância em que vive uma grande parte da nossa sociedade sobre o que realmente se passa no país.
Usar a analogia epidémica é, talvez, a forma mais eficaz de falar sobre a revolução subterrânea em curso. Enquanto à superfície as forças radicais vão forçando as fronteiras do aceitável, persistindo na descredibilização das instituições e relativizando a realidade, no plano subterrâneo vão infectando sem controlo os crentes, os sedentos e os vulneráveis. A par da infinitude de coisas extraordinárias que a Net e as redes sociais nos trouxeram, grassa aí todo o tipo de informação especulativa e manipulativa, sendo a nova arma de destruição maciça com exércitos poderosos e eficazes.
De forma persistente e muito bem organizada, essencialmente através dos grupos de WhatsApp e canais do YouTube, está a ser criado um Portugal alternativo, onde vive cada vez mais gente. O foco, porque o medo do diferente une e galvaniza, é sempre o estrangeiro e a terrível ameaça que representa; depois, vêm as instituições, que urge descredibilizar. Há uma parte de Portugal que acha que não se pode sair à rua na Amadora, em Odivelas ou mesmo em Lisboa. Imagens de festas hindus num país qualquer são veiculadas como manifestações islâmicas supremacistas numa qualquer terra portuguesa, sublinhando o perigo iminente para o “português de bem” e a incompreensão pela passividade geral face à ameaça real da imigração. As reportagens de pseudo-repórteres no Martim Moniz, o aproveitamento e distorção das festas de fim de Ramadão ou outras, a invenção de factos e a revisão da história são o pão nosso de cada dia. Aparentes mães de família bramam em vídeo contra a ONU por legislação que nunca fez, acusam a OMS de promoção da pedofilia e avisam contra os inúmeros perigos de confiar no Estado. Cientistas forjados falam do tenebroso plano de controlar a população através de vacinação. Um destacado deputado do Chega faz um vídeo em que acusa a ocupação muçulmana da Península de ter explorado e abusado das nossas mulheres.
Esta persistência na infusão do medo, na insinuação permanente de que o imigrante é um marginal, de que os imigrantes gozam de impunidade perante a lei e têm mais direitos que os “portugueses de bem”, resulta num ódio crescente por parte daqueles que se deixam envolver pela narrativa. Tal como num passado de muito má memória, começaram com os ciganos, usando-os como teste e via de entrada para a construção da fractura social. De repente, havia gente que não se cruzava com um cigano há anos a discorrer sobre o fardo e ameaça que estes constituem. Seguiram-se os desgraçados do bairro da Jamaica, os muçulmanos das mesquitas de Lisboa e todos os que fazem o longo caminho da esperança desde o Indostão. Ventura chega a afirmar em directo nas televisões que Braga está “irreconhecível e tomada por gente do Indostão”. Em paralelo, estava em marcha a narrativa sobre as glórias do nosso passado colonial, os grandes feitos do Estado Novo e a urgência da restauração de uma certa ideia de Portugal que, de resto, nunca existiu.
As declarações de Ventura sobre o crime hediondo do Porto são um tratado de cinismo e o atestado da profunda má-fé que norteia a sua acção política, validando assim a sua ligação a este movimento subterrâneo aparentemente mais informal. O “sim, mas” é inaceitável. A “compreensão” por eventuais milícias e ajustes de contas é um ataque gravíssimo à democracia e ao Estado de Direito. O plantar da dúvida sobre a origem dos criminosos, que afinal serão portugueses de gema, tem o mesmo propósito. Trump, que Ventura já convidou várias vezes para vir a Portugal, faz exactamente o mesmo com os terroristas do 6 de Janeiro e com todos os criminosos que sirvam os seus intentos.
Esta é realmente a maior ameaça que enfrentamos, não aqueles que nos procuram em busca de uma vida melhor, mas os que vivem da divisão, do ódio e da violência. A imigração pode, e deve, ser regulada com humanismo, bom senso e regras claras, visando em primeiro lugar proteger os interesses de quem nos procura, e o todo, por consequência. O radicalismo é mais difícil de combater numa sociedade livre, exige melhor democracia, mais literacia, mais informação, mais cidadania e melhores protagonistas; não se resolve por decreto.»
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