29.5.25

O voto na emigração e a realidade mediada – uma hipótese

 


«Comecemos por esclarecer a perplexidade de muitos: como é que emigrantes votam num partido que faz campanha agressiva contra a imigração? O espanto resulta de uma ingenuidade bondosa: a maioria vota a pensar nos seus interesses, não com base num sentimento de justiça ou reciprocidade. Os imigrantes não se identificam com os outros imigrantes, mas com o seu próprio problema. Depois arranjam critérios para se excluírem do "problema" geral: são europeus e cristãos, chegaram há mais tempo, integraram-se, trabalham. Ao contrário dos outros, claro.

A falta de empatia com quem vive o mesmo drama que viveram é natural: os imigrantes são os que se sentem mais ameaçados pela concorrência de outros imigrantes. São os que lhe estão mais próximos na escada social de um país. É, por isso, muito comum votarem em partidos que aparentemente os combatem.

No caso dos resultados dos círculos da emigração, que deram uma vitória ao Chega nos dois círculos (com empate em número de deputados com a AD), o voto é, no entanto, para o parlamento do país de origem.

Fui, há um ano, a convite do maior sindicato suíço, falar com emigrantes (portugueses e não só) sobre o 25 de Abril (a conversa foi a 26), poucos dias depois das eleições que revelaram o Chega como maior partido português no círculo da Europa. A Suíça foi determinante para esse resultado. Tudo o que me explicaram foi por interpostas pessoas, porque estes sindicalizados não eram eleitores do Chega. E não ficaram claras as razões do resultado especialmente impressionante naquele país. Da influência de um empregador a queixas muito específicas, tudo me chegou ao ouvido. Apesar de esperar estudos mais aprofundados, nada me pareceu verosímil para uma tendência que parecia transversal na emigração portuguesa, na Europa e fora dela.

Se é verdade que o voto da emigração mais recente pode ser determinado pela situação no país (precisaria de saber o seu peso relativo no voto), cuja leitura pode ser mais severa por parte dos que se viram obrigados a partir, isso não acontece com as comunidades instaladas, que, mantendo uma relação com a realidade portuguesa, não sofrem boa parte dos problemas que temos dado como justificação para o crescimento do Chega.

Os emigrantes na Suíça ou no Brasil não vivem a falta de habitação, não têm contacto com o crescimento da imigração e não se confrontam com os efeitos da pressão sobre serviços públicos em território nacional.

Tirando a parte que emigrou há menos tempo, nada disto os afeta diretamente. E, no entanto, o seu voto de protesto foi ainda mais significativo do que no território nacional. O contacto mediado com esta realidade parece ter, portanto, ainda mais impacto do que o direto.

Só que esse contacto há de ser ainda menos mediado pela comunicação social do que no país. Apesar de muitos verem televisões nacionais ou consultarem sites de notícias, arrisco-me a dizer que a utilização das redes como forma preferencial de informação será ainda mais intensa. E a distância pode tornar essa experiência ainda mais imersiva do que a de quem, apesar de tudo, tem contacto direto e permanente com o que se passa no país. Quando houve tumultos em Lisboa, os meus vizinhos alentejanos perguntavam-me se não tinha receio de ir à cidade, imaginando toda a capital em chamas. Os mitos que se espalham, entre os emigrantes, sobre os benefícios dos imigrantes que chegam a Portugal, têm um efeito ainda mais poderoso junto de quem teve de partir.

Não estou a diminuir as dezenas de razões que ouvi na Suíça, há um ano, de quem conhece a realidade da emigração. Estou a sublinhar, como hipótese plausível, que a forma como nos informamos, debatemos e nos organizamos é determinante para o voto. Que não basta perguntar de que se queixam as pessoas. Precisamos de saber como lhes surge a realidade. Não é por acaso que o crescimento da extrema-direita tem coincidido com a preponderância desta forma de nos informarmos.

Soa mal dar esta explicação, porque todos se esforçam para procurar uma forma de identificação empática com este voto, tentando recuperá-lo para a democracia. Mas, assumindo que há muitas razões para chegarmos a este ponto, seria bom não ignorarmos, para ficarmos bem no retrato, um dos fatores mais distintivos deste tempo. Para não continuarmos a bater em portas erradas. E para não continuarmos a adiar a regulação das redes sociais, pressionados pelos mesmos que, chegados ao poder, esmagam a liberdade de expressão dos outros.»


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