26.5.25

A revisão constitucional e a atração pelo abismo

 


«Se a direita conseguir dois terços, até poderá fazer a primeira revisão constitucional sem o PS. Não na parte política, onde o acordo do Chega seria escandaloso, mas no papel do Estado Social. E isso pode corresponder a um autêntico abalo constitucional. Nestas eleições, está mais em jogo do que parece”.

Foi assim que acabei o meu texto a dois dias das eleições. Bastaram três para o que se dizia serem fantasmas aparecerem. Da forma pouco clara a que este tempo, dominado por caciques locais alcandorados à liderança nacional, nos habituou. A Iniciativa Liberal avança, o Chega aplaude, o governo promete o estilo “todos ao molho e fé em Deus”.

Ao abrir o processo constituinte para prova de vida quando os resultados a mantiveram inútil, a Iniciativa Liberal faz um enorme favor ao Chega: enquanto a extrema-direita vai faturando, vamos passar um ano a discutir a prisão perpétua e a castração química.

A conversa da Iniciativa Liberal começou com um fetiche: o preâmbulo onde se fala de “socialismo”. Um absurdo. Os preâmbulos não são letra da Constituição. Mas o melhor é lerem o que está em causa: “A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno”. Ou seja, é uma afirmação dos constituintes que só poderia ser alterada pelos próprios. Não é possível mudar o que “a Assembleia Constituinte afirma”, por outros que não ela. O valor é meramente histórico, vinculando apenas os seus signatários.

Simbolismos à parte, há coisas sérias. E o mais sério é a única parte em que é certo haver convergência à direita: o Estado Social. Trata-se de ressuscitar o espírito da famosa revisão constitucional que Passos Coelho foi obrigado a meter na gaveta. Quando nos dizem que falar da privatização do Serviço Nacional de Saúde e da Segurança Social é agitar fantasmas, estão a ser sonsos. Nunca ninguém, nem mesmo a IL, escreverá “privatização”, preto no branco. Isso faz-se por fases, retirando, como gostam de dizer, o Estado do caminho.

Uma das funções da IL e do aparato de propaganda que lhe é próximo (+Liberdade e Observador, dois projetos dependentes do mecenato ideológico) é desequilibrar o debate político para, entre muitas outras coisas, libertar para os privados os dois melhores nacos do Estado: Segurança Social, que hoje tem uns apetitosos 40 mil milhões no seu Fundo da Estabilização, e Serviço Nacional de Saúde. São dois setores fundamentais para o sistema financeiro improdutivo, que procura negócios protegidos da concorrência externa, que garantam acesso a capital ou que tenham uma procura inelástica.

Não estamos a falar de pequenos acertos, mas da estrutura do Estado Social, uma das traves-mestras do nosso regime. Seria, depois de 1982, a mais profunda mudança do regime constitucional. E a primeira revisão a dispensar PS ou PSD. Existindo os dois terços, não está, como é evidente, em causa a legitimidade formal desta revisão. Talvez esteja em causa a legitimidade política, porque a AD nunca falou, na campanha, de nada tão radical. Mas o meu ponto é outro.

Como disse Fernando Negrão, que apelou para que o PSD matasse imediatamente o assunto, e reforçou Carlos Coelho, esta revisão, feita à margem do PS e com um partido de extrema-direita, abriria mais uma fratura política num dos momentos mais sensíveis da nossa democracia constitucional.

Imagine-se a situação inversa, se essa possibilidade tivesse alguma vez existido. Que acusações iradas de irresponsabilidade e frentismo radical seriam feitas ao PS? Independentemente da legitimidade formal, mudar elementos estruturantes da Constituição (como é a natureza do nosso Estado Social) sem o Partido Socialista só pode ser visto como um corte de regime e deve ser tratado como tal em todas as suas consequências.

As afirmações de vários dirigentes do PSD só nos podem deixar mais alarmados. Não queriam este processo, mas, a existir, será medida a medida. Fazer uma revisão mais do que cirúrgica, medida a medida, é ainda pior do que a fazer negociada à direita. É retirar toda a coerência ao nosso regime. E torna, como toda esta forma sortida de procurar apoios e chantagear a oposição, o “não é não” num mero formalismo. Na realidade, se há revisão constitucional com o Chega, o “não é não” é igual para o Chega e para o PS.

Seja qual for o modelo, qualquer revisão que, em temas estruturantes, exclua o PS é incoerente com o apelo para que ele garanta a governabilidade. Se a AD conta com o Chega para um processo tão importante como uma revisão constitucional, só pode depender do Chega para o resto.

Dirão: no estado em que o Partido Socialista se encontra, pouco ou nada pode fazer, porque desaparece nas eleições seguintes. Isto é meia verdade. Falta a outra: à próxima crise já não é o PS que é comido pelo Chega. É a AD. O PS alimentou o monstro que o devorou. A AD continua a fazer o mesmo, não percebendo que é a próxima. Haverá um momento em que estará tão refém da necessidade de estabilidade como o PS. Seria bom que não dinamitasse as pontes de que vai precisar. É nos momentos de maior soberba que se comentem os erros mais trágicos.»


2 comments:

Fenix disse...


"Fazer uma revisão mais do que cirúrgica, medida a medida, é ainda pior do que a fazer negociada à direita."

Aqui chegados, e tendo em conta que a democracia também pode gerar os monstros que a destroem, sugiro, que o povo cujo voto é uma arma, tão redentora como letal, e que a maioria nem sonha no "que" vota, dizia eu que, sugiro que lutemos para que passemos de uma democracia representativa, para uma democracia participativa.

Assim, em vez de votar nos "figurões", o povinho vai ter que votar medida a medida, e aí irá saber o que está realmente em causa, e decidirá de acordo com as suas convicções e necessidades...

Albino Manuel disse...

Tretas. A constituição foi aprovada em 1976. Antes tinha havido o Pacto MFA-partidos. Os direitos, liberdades e garantias foram aprovados largamente com os votos do CDS-PSD-PS. Os direitos económicos e sociais com os votos do PS-PCP. É nestes que está o medo da esquerda, e não é pela prestação de serviços, é o carácter estatal da prestação de serviços.
Em todo o caso, se essas normas reflectem um pensamento com o qual o eleitorado já não se revê que sentido faz lá continuarem?

Fora o resto: tenho direito ao SNS, mas recorro aos hospitais privados. É só ver a cuf a crescer. Tenho direito à escola estatal, mas ponho os filhos no colégio.
No fundo, lá no fundo, a preocupação é outra: os sindicatos.