28.5.25

Nem tudo cabe no centro

 


«Nos fins do costismo, o Partido Socialista governou pelo centro. Não por convicção ideológica, mas por cálculo político. António Costa percebeu em 2019 que, num país atravessado por memórias de austeridade e fadiga institucional, o centro era o espaço de menor atrito e maior retorno. A esquerda à sua esquerda fragmentava-se em disputas de pureza. A esquerda à sua esquerda fragmentava-se em micro-identidades e conflitos simbólicos. E o PS ocupava o intervalo para o gerir. O centro, naquele momento, bastava.

Mas o centro não é uma posição. É uma tensão. Vive do equilíbrio entre forças que se opõem. Quando uma dessas forças colapsa ou outra cresce sem contenção, o centro desfaz-se. De espaço de compromisso, transforma-se em zona de erosão. E quem ali se instala por demasiado tempo acaba por ficar sem estrutura. Fica a meio de tudo, exposto a todos.

Luís Montenegro seguiu-lhe o guião. Herdou um centro já gasto por anos de tecnocracia e contenção. E num Parlamento fragmentado, preferiu proteger-se do que romper. Prometeu estabilidade. Prometeu responsabilidade. Prometeu, no fundo, o direito ao sossego. Mas o problema de herdar o centro em tempo de radicalização é este: o centro já não tem muros. É campo aberto. E o vento sopra de fora.

O primeiro ano da AD foi um exercício de contenção formal. Evitou alianças diretas com o Chega, geriu escândalos, cumpriu dossiês deixados pelo governo anterior. E isso, num contexto europeu de degradação democrática, já não é pouco. Mas agora, com a revisão constitucional à vista, o ensaio acabou. A AD terá, inevitavelmente, de dizer ao que vem.

Montenegro diz querer discutir com todos. Reforçou-o várias vezes, em tom quase litúrgico. Todos. Todos. Todos. O eco é claro, talvez até ensaiado. Remete para Francisco, o Papa que fala de inclusão com autoridade moral. Mas também é Francisco quem diz que a prisão perpétua é uma pena de morte disfarçada. Um fim sem voz. Um cancelamento do humano.

As frases são bonitas. Mas trazem escolhas. Quando os direitos estão em causa, não se pode estar de todos os lados. Há lados a que se pertence. E lados que se recusam.

No fundo, a questão não é jurídica. É política. A quem responde o centro, quando pressionado? A quem cede quando já não há equilíbrio?

Karl Polanyi escreveu, em 1944, que o fascismo não nasceu de um excesso de autoritarismo, mas da ausência de proteção. Quando o sistema falha, quando os pobres aumentam, quando a classe média sufoca, as pessoas procuram amparo. Se o Estado não responde, surgem os discursos que prometem pertença — mesmo que o façam à custa da exclusão.

O Chega nasceu aí. No lugar do que faltava. Não oferece políticas públicas. Oferece pertença. Um "nós" contra os outros. E a sua função política pauta-se por deslocar o eixo do possível. Redefinir o centro não como espaço de compromisso, mas como zona de assimilação. Ventura não precisa de estar no Governo para ser eficaz. Basta-lhe estar no campo de força que redefine o debate. E basta-lhe que os outros aceitem discutir nos seus termos para vencer sem maioria.

O centro, se não impõe limites, deixa de ser centro. Passa a ser zona de assimilação. Ventura sabe disso. Montenegro terá de decidir se também sabe.

A AD arrisca ser engolida não por coligação, mas por contágio. Se aceitar discutir medidas iliberais como se fossem legítimas, legitima a ideia de que tudo está em aberto. Mesmo o que não devia estar. Mesmo o que deveria ser cláusula de civilização.

Mark Lilla chamou a isso o extremo-centro. Um espaço onde os partidos moderados, com medo de perder relevância, começam a parecer-se com aquilo que dizem combater. A técnica cede ao instinto. A prudência transforma-se em pânico com verniz. E a política, nesse estado, deixa de ser horizonte. Passa a ser reflexo.

A AD diz que quer proteger a Constituição. Mas protegê-la não é conservá-la em vitrina. É reconhecer os limites que a fundam. Não basta manter as formas. É preciso afirmar o conteúdo. E o conteúdo de uma Constituição vive dos princípios que não se renegociam.

O Chega não quer governar. Quer escrever, deixar inscrita, no texto, a sua visão do mundo. Mesmo que depois desapareça, quer permanecer na forma como o Estado se organiza e pune. Quer tornar perpétuo o que devia ser passageiro. O ressentimento. A raiva. A urgência de castigo.

A AD pode seguir esse caminho. Ou pode, ao menos por um instante, fazer outra pergunta. Não o que é possível negociar. Mas o que deve, à partida, ficar fora da mesa.

Porque a democracia não se mede apenas pelo que aceita. Mede-se também pelas fronteiras que impõe. E nem sempre ceder é evidente. Às vezes, cede-se apenas por começar a perguntar se vale a pena resistir. Há fronteiras que não se ultrapassam — nem em nome da estabilidade.

Nem em nome de “todos”.»


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