12.10.23

Onde estará a raiz do mal?

 

@Hugo Pinto


«Em “Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch” nada sucedia de diferente: frio glaciar, fome, noites mal dormidas, jornadas de 12 horas de trabalhos forçados no gulag soviético. Mas não havia espaço para lamentações, pois que a pena pelo descontentamento manifesto não era menos do que a morte. Resistindo fisicamente e em silêncio como um dos condenados políticos, Aleksandr Soljenítsin haveria de escrever mais tarde este livro e, sobretudo e “de coração apertado” pelos que tinham morrido nos campos, os três volumes do “Arquipélago Gulag” — um testemunho literário e factual arrasador sobre o “paraíso na terra.

Totalmente a despropósito, confesso, lembrei-me disto apenas a propósito do título do livro: neste nosso tão cantado “Portugal de Abril”, em cada dia que passa, parece que nada acontece de diferente — e já lá vão 50 anos. Em cada um destes anos e em cada dia destes anos, há sempre portugueses — nas ruas, nas esquinas, nos cafés, nos empregos — a lamentar a sua sorte e a do país. Não sei se são a maioria, mas pela atenção que conseguem atrair e pelas atenções e importância que todos lhes prestam, assim parece — ao ponto de os seus estados de alma se confundirem com o sentimento profundo da nação. Diariamente, os jornais televisivos trazem-nos o retrato de um país cansado, zangado, frustrado nas suas expectativas, sempre revoltado com quem nos governa, desconfiado do próximo, sem horizonte, sem esperança, triste e acabrunhado. Se os dinamarqueses são o povo mais feliz do mundo, os portugueses serão, se não os mais infelizes, pelo menos os mais lamurientos, os mais inconformados com a sua sorte. E, todavia, se, fazendo contas, será fácil deduzir que os dinamarqueses, via UE, já terão contribuído com muitos milhões para minimizar a nossa tristeza, também sou capaz de pensar em muitas outras razões pelas quais eles nos poderão invejar. Talvez, irmos ao fundo das razões do nosso mal-estar endémico, devêssemos começar por enviar alguns dos nossos profissionais do descontentamento à Dinamarca para ver se entendem porque é que eles são tão estupidamente felizes: para por exemplo, aqueles profetas da desgraça que todos os finais de Verão emergem de novo à superfície, esses sim, felizes da vida, para nos anunciar que as escolas não vão abrir, os hospitais não vão atender doentes e os tribunais vão continuar a não funcionar.

Esta semana portuguesa foi um bom exemplo daquilo a que poderemos chamar o estado da nação. Logo a abrir, multiplicou-se o número de hospitais a fecharem valências e serviços devido à recusa dos médicos em fazerem mais do que o limite de horas extraordinárias exigíveis por lei. Os funcionários judiciais, cuja greve suspende há oito meses o direito constitucional à justiça, ouviram nova proposta da ministra, que, ao que parece, não os satisfaz. Os senhores Nogueira e Pestana, também ouviram novas propostas, mas enquanto não lhes derem os 6 anos, 6 meses e 23 dias de promoções congeladas lá atrás, nada feito, pois que a última das suas preocupações é que os alunos tenham aulas e os pais tenham onde deixar os filhos para irem trabalhar. E assistimos a manifestações em várias cidades pelo mais elementar dos direitos: ter uma casa para viver. Como se não bastasse, para baralhar as coisas, o PSD de Montenegro resolveu dar duas cambalhotas em simultâneo: está disposto a ceder aos professores, abrindo uma excepção no tratamento do funcionalismo público, e um lóbi capitaneado pelo “intelectual” Pinto Luz, de Cascais, já não quer esperar pelo parecer dos técnicos e defende a impensável solução do futuro aeroporto de Lisboa em Santarém. Ou seja: quem visse as notícias do dia e lhe acrescentasse o panorama das contas públicas, o nível extremo da carga fiscal, o peso da dívida pública e dos seus juros e as expectativas económicas de uma Europa estrangulada pela guerra na Ucrânia, concluía que o país não tinha saída. E quando o Estado cobra os impostos que cobra e, em troca, nenhum dos seus serviços parece funcionar, seguramente que estamos a ser mal governados. Se grasna como um pato e voa como um pato...

Porém, à noite o primeiro-ministro foi à TVI e, com excepção da questão da habitação, onde reconheceu a “frustração” de ter falhado as promessas e os objectivos, em tudo o resto foi desarmante. Na saúde, acenou com aumentos salariais entre 12% e 30% para os médicos dos cuidados de saúde primários e de 30% para os que aceitarem dedicação plena nos hospitais, acentuando que desde que é primeiro-ministro o orçamento do SNS subiu 56%. Na política de rendimentos, enumerou todos os apoios sociais em vigor e referiu que no último ano as contribuições para a Segurança Social aumentaram 13%, sendo 5% devido a mais inscritos e 8% a aumentos salariais. E rematou: “Desde que sou primeiro-ministro, há oito anos, a inflação acumulada subiu 13% mas o salário mínimo 51% e o salário médio 31%.” Quanto aos professores (e os números são sempre dele), referiu que 98% dos horários de aulas já estão preenchidos; que os quadros pedagógicos passaram de 10 para 63, encurtando as distâncias de deslocação dos professores; que ao fim de três anos na mesma escola estes só mudam se quiserem; e que 8 mil já se vincularam este ano. Só não cede às promoções retroactivas porque teria de o fazer para toda a Função Pública. E também não vai baixar o IRS a não ser para isentar progressivamente os jovens durante cinco anos, mas prometeu baixar a colecta do IRS em 2 mil milhões até final da legislatura.

Depois de ouvir António Costa pela enésima vez nestes oito anos, acabo baralhado. Parece um capitão de navio numa nau à deriva no meio de uma tormenta, em que ele é o único que não está em perdição e parece saber o que faz. Manifestamente, o seu grau de preparação e segurança faz dele o melhor dos membros do Governo. Mas quando se chefia um governo em que pelo menos metade dos ministros não presta e não se vislumbra rasgo nem visão de futuro, isso não faz dele um bom primeiro-ministro. O navio avança aos baldões, retido por uma âncora de arrasto que ninguém solta. Mas há por aí alguém que tenha outro rumo, outra bússola e melhor timoneiro para conduzir esta nau das lamentações?»

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