13.10.23

Ainda se celebra o Estado Novo na Faculdade de Direito

 


«Em junho de 2022, a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa anunciou orgulhosamente a reabertura de dois espaços museológicos: a Sala-Museu Professor Marcello Caetano e a Sala-Museu Professor Paulo Cunha. Originalmente criada em 2006, a Sala-Museu Marcello Caetano é caracterizada pelo website da Faculdade de Direito como uma pequena área com “livros, manuscritos, objetos de índole pessoal, trajos académicos e condecorações de vários países.” Por outras palavras, é realizada uma homenagem a Marcelo Caetano nesta sala. Homenagem essa que omite um lado fundamental da sua história de vida: o seu papel no Estado Novo.

O mesmo acontece na Sala-Museu Paulo Cunha, “um espaço de arte dedicado à memória deste antigo jurista, advogado, orador e homem público”. O legado que Paulo Cunha deixou enquanto ministro do Estado Novo é convenientemente colocado de lado. Em vésperas da celebração dos 50 anos do final da ditadura, a celebração acrítica que a Faculdade de Direito faz a estes dois “homens fortes” do Estado Novo revela-se não apenas datada, mas também insultuosa para os estudantes universitários que resistiram à ditadura.

Quando questionados sobre as salas-museus, os defensores destas homenagens escudam-se na importância que Marcelo Caetano e Paulo Cunha tiveram na história do Direito português. A sua categoria de juristas de renome é, na opinião dos seus defensores, razão suficiente para prestar estas homenagens através de espaço museológico. O seu legado político é algo totalmente diferente, afirmam. Separam a arte do artista, apesar de esta ser uma separação um pouco complicada – onde começa e acaba a atividade jurídica de cada um destes homens? A sua atividade política não era, também, parte da sua atividade jurídica? Os seus contributos jurídicos não moldaram os seus “contributos” políticos? Será possível separar a arte do artista quando falamos do estudo do Direito e da governação política, duas áreas que caminham de mãos dadas? Não deveremos, pelo contrário, ler os seus contributos para a história do Direito português à luz dos cargos políticos que desempenharam, e vice-versa? Infelizmente, estas salas-museus não adotam esta leitura crítica dos juristas de renome: apenas celebram acriticamente o seu legado, esquecendo-se que os homens não são apenas aquilo que escrevem, mas também o que fazem nas suas vidas.

As visitas ao museu apenas são possíveis por marcação prévia, mas a Faculdade de Direito disponibilizou visitas virtuais onde podemos ver estas homenagens aos governantes do Estado Novo no conforto dos nossos sofás. Ao entrarmos na Sala Marcello Caetano, deparamo-nos com uma cronologia da sua vida. Podemos observar que, enquanto os seus contributos jurídicos são especificados – o tema da sua tese de doutoramento, o seu papel central na fundação de um “novo” Direito Administrativo português, os seus contributos em diferentes conferências internacionais de Direito –, os seus cargos políticos são meramente mencionados. Em Setembro de 1968, é chamado a chefiar o Governo português, lê-se. Foi Presidente do Conselho de Ministros até ao dia 25 de Abril de 1974, lê-se um pouco mais em baixo. Residiu, desde 1974 até à sua morte, em 1980, no Brasil. Final da cronologia.

Ainda se celebra o Estado Novo na Faculdade de Direito Nada é dito sobre a governação de seis anos de Marcelo Caetano, nada é dito sobre o porquê de – misteriosamente! – Caetano ter ido para o Brasil depois do 25 de Abril. Há muito a dizer sobre o que é silenciado nestas linhas, muitas questões por responder. O que terá acontecido no dia 25 de Abril?

Há, assim, omissões que fazem muito barulho. É o caso das omissões da Sala-Museu Professor Marcello Caetano. Omite-se o papel central que Marcelo Caetano teve na ditadura até 1974 – desde o seu apoio, enquanto jovem, à ditadura militar imposta em 1926, aos cargos políticos que ocupou. Entre estes, contam-se o de comissário da Mocidade Portuguesa entre 1940 e 1944, ministro das Colónias entre 1944 e 1947, presidente da Câmara Corporativa entre 1949 e 1955, ministro da Presidência do Conselho de Ministros entre 1955 e 1958 e, claro, Presidente do Conselho no Estado Novo entre 1968 e 1974.

Não se pode falar de Marcelo Caetano sem falar do legado que deixou ao ocupar cada um destes cargos: da manutenção de uma política colonial que oprimiu os povos colonizados e que enviou milhares de homens para uma guerra sem propósito, da censura e perseguição aos opositores políticos pelas mãos da polícia política, do falhanço do “marcelismo” em abrir o regime. O mesmo se poderá dizer das omissões das salas-museus quanto à colaboração de Paulo Cunha com o regime salazarista enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros entre 1950 e 1958.

Todas estas omissões se traduzem numa verdadeira celebração acrítica de dois governantes do Estado Novo promovida pela própria Faculdade de Direito, 49 anos depois do fim da ditadura. Infelizmente, ainda se celebra o Estado Novo na Faculdade de Direito. Há, no entanto, alternativas a esta celebração.

Em 1972, Ribeiro Santos – um ativista estudantil e militante antifascista – foi baleado e assassinado pela PIDE num encontro de estudantes contra a repressão no ISEG. Ribeiro Santos era um estudante da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Ao contrário de Marcelo Caetano, que era presidente do conselho no dia do seu assassinato, Ribeiro Santos não tem um museu em sua honra – apenas uma fotografia sua no átrio da faculdade e uma pequena sala da associação dos estudantes com o seu nome. Porque não transformar as atuais salas-museus, locais de homenagem acrítica a figuras do Estado Novo, num museu da resistência estudantil durante a ditadura, relembrando Ribeiro Santos e tantos outros que lutaram pela liberdade? Porque não atribuir a sala a núcleos estudantis que prosseguem outros fins? Os usos possíveis para a sala são infinitos e caberá à comunidade estudantil defini-los. Uma coisa é certa: o fascismo e as suas celebrações não podem ter lugar numa universidade pública.»

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