6.9.24

Três mil e setenta e nove dólares

 


«Se quisermos ver o futuro, temos de viajar para a Ásia. Afastados de países mais prósperos do Sudeste Asiático como a Tailândia ou Singapura e a Malásia ou a Indonésia, ou a oriente a Coreia do Sul e o Japão, a paisagem entristece.

Três mil setenta e nove dólares. O preço de um rim birmanês, vendido a um chinês. Um transplante feito na Índia. Maung Maung foi obrigado a vender a única mercadoria, o corpo. O rim. Preso e torturado, decerto falsamente acusado, pela Junta militar que tomou o poder a seguir ao golpe de 2021 que pôs fim à fugaz democracia de Myanmar, a família foi obrigada a contrair empréstimos para comer. Quando saiu da prisão e das mãos dos carniceiros, Maung descobriu que a mulher tinha contraído dívidas que não podiam pagar. Perdido o emprego, a sombra da fome encharcava o casal e a filha. Ofereceu-se aos traficantes de rins. Uma rede criminosa de tráfico de órgãos dedica-se a explorar o negócio dos transplantes e candidatos não faltam. A rede organiza a viagem para a Índia e a cirurgia. O Facebook facilita o balanço entre a oferta e a procura. Grupos organizados recebem propostas de birmaneses desesperados.

Apesar da ilicitude, a Meta e Zuckerberg não comentam. Se a França deteve o dono do Telegram por atividades ilícitas dentro da rede, a América talvez devesse prestar atenção ao que acontece dentro do Facebook.

No Afeganistão, sem tecnologia, famílias sitiadas pela indigência vendem os filhos pequenos, para uso e abuso dos pedófilos compradores. Dois mil dólares, por aí. Uma prática que sempre existiu no país dos talibãs, atenuada nos anos da ocupação militar americana. Nas zonas rurais onde não chega a lei e muito menos a compaixão, o hábito de manter escravos infantis, chai boys, como servos sexuais ou de entretenimento, é banal. Rapazinhos bonitos são procurados pelos senhores da guerra e traficantes de ópio, uma boa parte da população masculina, visto que as armas são como a papoila, estão em todo o lado. Na retirada de Cabul, os americanos deixaram para trás toneladas de armamento que os talibãs e contrabandistas açambarcaram.

Tal como Myanmar, o Afeganistão é um país relegado para os fundos da consciência ocidental e da compaixão seletiva. Ignorado pelo jornalismo e pelos historiadores contemporâneos.

Nos dois países, o turismo não é salvação. Myanmar recebe turistas chineses, que são na maioria traficantes ou negociantes de armas e drogas, representantes e operários das tríades, sabendo que a China precisa da Junta para exercer sobre o país a predação total. A China usa Myanmar como uma gigantesca fábrica de fentanil, a droga com a qual tem esperança de contribuir para o declínio da civilização ocidental, sobretudo o declínio da sociedade americana. Não é um insucesso, apesar de os cartéis mexicanos se terem juntado à festa. As substâncias químicas são mais fáceis de apurar em laboratórios ambulantes do que a manipulação das velhas drogas baseadas em plantas. São também mais baratas de traficar e produzir e a clientela não esmorece. Nunca a heroína foi tão barata. Para os camponeses afegãos, nada é tão rentável como o cultivo da papoila, mas os preços baixaram.

Myanmar tem recursos naturais cobiçados pela China. Rubis das minas de Mogok, as pedras com a maior qualidade. O vale de Mogok, lendário desde o império britânico, com um legado tão nefasto e cruel como o legado colonial belga no Congo. Não é preciso ler Orwell para a evidência. O império deixou sequelas e mazelas étnicas que ajudam a perceber o fosso entre os muçulmanos Rohingya e a maioria da população budista.

Para os birmaneses Bamar, budistas extremos, os Rohingya eram uma herança dos ingleses, que os importaram de países como o Bangladesh para a escravatura laboral. Apesar dos grupos étnicos vários do país, Shan, Karen, Chin, Mon, etc., a maioria é budista e reage aos “bengalis”, apesar de os “bengalis” estarem há décadas no país. São, agora, apátridas, relegados para as lamas do Cox’s Bazar no Bangladesh. Outra minoria étnica em esquecimento.

Mogok tem rubis que são traficados pelas tríades chinesas e que acabam nas mãos dos joalheiros que servem uma clientela multimilionária. Tal como os rins, os milionários chineses compram tudo, do corno de rinoceronte ao rubi da Birmânia. Os rubis de Mogok são raros, por causa do golpe e da guerrilha regional das etnias contra a ditadura.

O efeito predador da China não se limita a Myanmar, também no Afeganistão exerce uma influência, juntamente com a regressada Rússia, mas é nos países pobres do Sudeste Asiático que a predação é mais visível. No Camboja, que a ditadura comunista e dinástica transformou em “país amigo”, a China constrói centros comerciais e casinos, em lugares onde os chineses gostam de passar os ócios, como Sihanoukville. A antiga praia paradisíaca é agora um faroeste onde reina o vício. Jogo, prostituição, tráficos vários, mais as vantagens logísticas do porto para as iniciativas tipo Belt and Road. A cidade foi assaltada pelos chineses, e alguns locais organizam uma resistência mafiosa, tentando sobreviver. A vingança e o crime são endémicos.

O Camboja tem outro bem precioso, a água, que as barragens chinesas roubam no Mekong corrente acima, 11 barragens sob controlo chinês, transformando terras que eram pântanos em desertos e gerando a catástrofe ambiental e a deslocação forçada das populações. Belt and Road, claro.

O país é também o poiso de call centers ilegais, onde operários do computador se dedicam a espoliar e enganar os ingénuos que querem enriquecer na net, com esquemas que sugam as poupanças de milhares de chineses online. Neste filme de terror, que Pequim sabe que existe e finge ignorar, os centros são operados por escravos tecnológicos recrutados na China para fictícios empregos e que acabam sem ver a luz do dia num armazém sem janelas de uma zona perdida do Camboja. Imaginem um lobo de Wall Street proletário em linha de montagem. Principescamente subornado, o regime autoriza e assiste à devastação humana e da natureza, à destruição das florestas, ao envenenamento dos rios, à esterilidade das terras, à violação dos direitos e modos de vida locais.

O turismo de massas chinês fez de Angkor Vat um circo, pior do que um parque Disney, onde os casamentos chineses acorrem para a fotografia em frente aos templos. Uma nova lei acaba de autorizar a devassa. É uma visão grotesca, instagramável.

E no Laos, bombardeado pelos americanos sem dó nem piedade durante nove anos, carpet bombed, a predação continua. Ainda intocado, e repleto de minas por explodir, o país tem uma beleza natural que estonteia, tal como a Birmânia. A beleza que a destituição e a solidão pouparam ao “progresso”. O Laos é o grande exportador de eletricidade para os países vizinhos, as chuvadas tropicais garantem as cheias do Mekong e das dezenas de afluentes e rios do país. A China quer agora construir acima de Luang Prabang, a cidade sagrada, uma barragem que a destruirá. A UNESCO ameaça retirá-la da lista do património mundial. Se a ameaça e a barragem vingarem, Luang Prabang e as gentes que ali vivem estarão condenadas à morte.

Em todos estes países as Nações Unidas têm uma presença que se caracteriza pela insignificância. A China corrompe a elite tóxica dos partidos comunistas que capturam a liberdade, as populações e os recursos. O Vietname é o país que mais resiste à predação chinesa, tanto da China como de Taiwan, note-se, e que ostenta a maior inteligência política no modo como lida com as potências.

O Mekong é um dos rios mais poluídos do mundo, e as águas da monção arrastam plásticos e detritos da civilização ocidental. Um mar de lixo. As multinacionais da alimentação e da junk food abriram loja para venderem os produtos com aditivos, viciando as crianças em doces e mistelas químicas destinadas a mudar os hábitos alimentares saudáveis de uma população. Crescem a obesidade e a diabetes.

O capitalismo global só mostra a verdadeira face nestes lugares onde não chega a consciência democrática libertadora que serve de desculpa para os desvios.

Escrevo isto depois de mais de um mês na região. Predação, destruição, poluição e exploração servidas pela ganância são a regra nos pobres. A regra do famoso “desenvolvimento”.»


0 comments: