7.9.24

Pode não ter novidade nenhuma e ser muito grave na mesma

 


«O argumento de que alguma coisa não tem novidade não é um argumento, nem político, nem legal, é um argumento jornalístico e, mesmo assim, mau e errado. O objectivo do seu uso é minimizar a relevância de um facto, por já ser conhecido há algum tempo. É nesse argumento que o primeiro-ministro e o seu coro partidário e “comunicacional” se baseiam para considerar irrelevantes as acusações do relatório da Inspecção Geral de Finanças sobre como foi feita a anterior privatização da TAP, nas últimas horas do já póstumo governo Passos Coelho, com o papel destacado para personalidades que, com o actual governo PSD/CDS, saíram do limbo onde estavam.

Declaro desde já, por causa das moscas, que não sou contra uma privatização da TAP, depende de como for feita e em que condições para o interesse público, nem me pronuncio sobre a legalidade ou não do que aconteceu, mas apenas sobre o modus operandi político-comunicacional, porque hoje não há uma coisa sem a outra. Pode haver muita relevância política sem que necessariamente haja matéria criminal, sob pena de cairmos no argumento de Pina Moura sobre a “ética republicana” que dava para lavar tudo. Aliás, vimos de anos e anos de “casos” sem matéria criminal, mas significativa penalização política. Este tem sido o pano de fundo da nossa vida pública, para o bem e para o mal.

Vamos aos argumentos. Primeiro, não é verdade que o retomar deste caso, pelo menos estranho, da anterior privatização da TAP não seja “novidade”. A novidade não tem apenas a ver com a factualidade do processo de privatização de 2015 (e mesmo assim há muitos detalhes que são “novos”), mas com a diferença do actual contexto: o ministro das Infra-Estruturas hoje volta de novo a ser o responsável pela privatização da TAP, que está em curso, e a outra responsável à época foi indicada para comissária europeia. Quem conheça o Parlamento Europeu sabe que, neste último caso, com ou sem “novidade”, vai haver duras perguntas. Acresce que não há maneira de evitar que qualquer eventual comprador diminua o preço oferecido com o argumento de que não se sabe que efeitos legais vão ter as acusações da Inspecção-Geral de Finanças, e a que ponto vão fragilizar os negociadores portugueses.

O contexto é, por isso, novo.

Segundo, haver este relatório, com o que lá está escrito, é também novidade per se, porque introduz um conjunto de acusações que vai para além do debate público à volta de 2015, que também não foi muito esclarecedor. No caso da TAP, haver uma privatização pelo menos estranha que suscita a uma entidade pública, a Inspecção-Geral de Finanças, a suspeita de haver crime deveria dar origem a uma polémica, tanto mais que um novo processo de privatização está em curso. Ora, a polémica tem sido muito incipiente, contrastando com as questões de indemnizações que alimentaram a Comissão de Inquérito e que, objectivamente, não têm, nem de perto nem de longe, a gravidade do caso actual.

Terceiro, por que razão não há a mesma indignação, o mesmo surto de acusações, clamor e escândalos? É por não ser “novidade”? Duvido, embora não diminua o papel amortecedor que a ideia de que "não há novidade” tem no jornalismo excitado dos dias de hoje. Penso, no entanto, que há outra razão que reflecte a politização actual do jornalismo, principalmente à direita - o alvo neste caso são, para muitos profissionais da indignação mediática, "os nossos” e não "os deles”. E "os nossos” não se tratam da mesma maneira que "os deles”. E o que é certo é que não haver o orgasmo matinal habitual da Rádio Observador, amplificado o dia todo pelos comentadores da mesma rádio em tudo o que é canal de televisão, tem um efeito. É eficaz a fazer um “caso” ou não. Neste caso, não.

Quarto, há sempre um efeito de neutralização pelo facto de ambos os partidos, PSD e PS, terem uma história de contradições e cumplicidades nestas matérias, e o valor dos ataques é muito diminuído pela lembrança da culpabilidade própria de cada um. O pingue-pongue de culpas tem um efeito devastador no escrutínio político porque o transforma logo à partida numa espécie de espelho - “fazes hoje o que eu fiz ontem” e não saímos disto. O desgaste reputacional dos dois partidos do poder é um factor no quase grau zero da nossa democracia.»


1 comments:

António Alves Barros Lopes disse...

Se não há novidade então já se sabe como é. - É o próprio Estado ir a concurso e obter o financiamento de um construtor de aviões com a a garantia de uma encomenda a fazer. Seria uma pescada de rabo na boca que também num é novidade!