1.9.24

O turismo como técnica de monocultivo

 


«“Mudam-se os tempos, mudam-se as cidades. E agora a Baixa está em baixo. Vem perdendo o seu brilho. Vão-se-lhe os dedos e ficam só os anéis: belos monumentos à míngua de olhos que os mirem, estátuas tristes dando o flanco desprotegido aos graffitti e às pombas, testemunhando o esvaziamento populacional, a ausência do torvelinho que fazia das Baixas lugares densos, habitados, envolventes. Enfim, a Baixa está cabisbaixa. (…) E os lugares antes densos da Baixa são agora, a partir do fim do dia, terras-de-ninguém, espaços ocos, entregues ao escoar lento da cidade noturna, despovoada e à mercê de intrusos e inquietações.”

De que cidade está ele a falar?, pergunta quem só conhece o Porto de há uma dúzia de anos para cá. As linhas anteriores pertencem a uma crónica que escrevi neste mesmo jornal em 2003. Intitulei-a “a cabisbaixa”, condensando numa palavra o cenário que então se vivia no centro do Porto. A intensa terciarização dos anos 1980 e 90 tinha tido como consequência o esvaziamento da Baixa.

A terciarização é um processo que ocorre nas cidades globais desde finais dos anos 1970, caracterizado pela perda de peso do setor industrial em favor do setor dos serviços. As cidades passam a ser centros da economia especulativa do solo e do investimento financeiro. Uma das consequências que mais atingem os habitantes é a da pressão do custo da habitação. De novo a crónica de 2003: “A excessiva terciarização é antagónica da função residencial, arrastando o esvaziamento dos espaços públicos a partir do fim da tarde e a degradação do parque habitacional que vai ficando semidevoluto.”

Que se passou daí para cá? Depois da terciarização, veio a turistificação. O turismo trouxe consigo muitas coisas boas. Mas à medida que se transformou em turismo de massas os inconvenientes começaram a surgir. António Alves Ferreira sintetiza-os magistralmente em “O turismo como insulto meritocrático”, capítulo do livro Protejam as Crianças da Meritocracia: uma questão de sobrevivência da humanidade, que acaba de ser publicado pela U. Porto Press.

O antropólogo catalão Miquel Fernández González, em Matar al Chino, analisa as consequências negativas da turistificação no Bairro Chino de Barcelona. O que diz assenta como luva no que está a passar-se no Porto ou em Lisboa e pode resumir-se assim: as cidades globais, para serem competitivas, têm de oferecer aos investidores mundiais as melhores condições para que os fluxos de capital produzam lucros substantivos. Esta competição impulsiona um segundo processo, que envolve as cidades numa corrida sem fim para construírem um espaço ideal, repleto de atrações, o que as torna parecidas a um parque temático. Para isso, utilizam a cultura como vantagem competitiva, apropriando-se de espaços de maneira física e simbólica (pensemos nos centros históricos, ou em locais-romaria como a livraria Lello ou o Majestic).

Com a tematização — alguns chamam-lhe também disneylandização, outros artistização — oculta-se o facto de que estas transformações respondem a poderosos interesses económicos privados, com a intenção de transformar em espaços de consumo os lugares de residência, participação e encontro. O resultado são quarteirões desabitados, cheios de restaurantes, bares, hotéis e lojas de luxo. Terreno propício a uma especulação imobiliária que exige preços exorbitantes para habitar e promove assédio urbanístico sobre os residentes economicamente mais frágeis. O risco, diz-nos Miquel Fernández González, é o da submissão da vida urbana a uma simplicidade representacional inspirada em lugares-comuns que apostam no turismo como técnica de monocultivo.»


0 comments: