2.7.25

O Cavalo de Troia dos “nossos valores” e do “nosso modo de vida”

 


«A conversa dos “nossos valores e modo de vida” reapareceu com Pedro Nuno Santos e logo na altura a critiquei, pelos perigos que a ideia aparentemente benigna quanto à integração dos imigrantes numa comunidade encerra. Ela regressou a propósito da nacionalidade (de uma forma mais recuada, porque pelo menos faz corresponder à aceitação dos valores e modos de vida nacionais a igualdade de direitos). E parece ter-se instalado como verdade autoevidente.

No último Expresso da Meia Noite, o secretário de Estado Adjunto da Presidência, Rui Armindo Freitas, disse: “Para trabalhar em Portugal não é preciso ser português, mas para ser português é preciso muito mais do que só trabalhar em Portugal, é preciso adesão aos nossos valores constitucionais e ao nosso modo de vida, isto é que é integração”. Quando Mariana Mortágua perguntou a que modo de vida se referia, a líder parlamentar da IL, também presente no debate, respondeu, falando dos direitos das mulheres. E a líder do BE recordou que eles estavam na lei, que inclui, de facto, os tais “valores constitucionais”, esses sim de respeito obrigatório. Se não estão, temos de estar a falar de outra coisa qualquer.

O suposto modo de vida e os valores nacionais podem ser menos exigente do que a lei. O respeito pela igualdade das mulheres está na lei, mas dificilmente se pode dizer que seja um valor sólido (e muito menos um modo de vida) na nossa sociedade. Se fosse, não tínhamos as taxas de violência doméstica que temos, em que, na esmagadora maioria dos casos, as vítimas são mulheres. Se fosse, as mulheres não ganhavam, em média, menos do que os homens. Se fosse, os lugares de topo não eram ocupados por homens em áreas em que as mulheres já são mais qualificadas. Pode dizer-se que os direitos das mulheres são, na nossa sociedade, mais respeitados do que noutras. Mas isso é uma comparação negativa. É abusivo dizer que fazem parte do nosso “modo de vida”. Até porque o modo de vida é uma coisa elástica, no tempo, no espaço e nos meios sociais e culturais.

O primeiro-ministro e o Presidente da República foram (e parece-me que ainda são) contra a lei que garante a autodeterminação das mulheres sobre os seus corpos. Os valores que os levaram a ter essa posição não os tornam menos portugueses. Até porque os valores de uma comunidade não são estáticos. A lei é que foi dando solidez a direitos das mulheres. Como as leis relativas aos homossexuais, a que o primeiro-ministro e o Presidente da República também se opuseram. É por isso que, quando ouço conservadores falar dos nossos valores, depois de terem estado na oposição a todas as leis que os consubstanciaram, temo que estejam a falar de outras coisas. Ou que esse seja um mero argumento xenófobo, que só vale para os outros. Já reparei que o feminismo e a causa LGBT são coisas que interessam a alguns quando têm outras pessoas para discriminar.

Da mesma forma, a Igreja Católica discrimina as mulheres e os homossexuais. E a maioria dos portugueses é católica. O que vale para os valores nacionais: uma suposição do que são valores e modo de vida, ou os limites da lei, que resultam da construção de consensos democraticamente sufragados, que até podem ser mais exigentes do que a ideia que alguns têm do que serão os nossos valores?

Apesar de aparecerem como evidentes, quem define quais são os valores e o modo de vida nacionais? A pergunta não é ociosa, é prática: que pessoas concretas e com que critérios vão determinar, pondo num papel, num exame ou numa comissão de avaliação, o que são os nossos valores e modos de vida, os mesmos a que será feita referência para aceder à nacionalidade, se estes não estiverem expressos na lei e na Constituição? Serem maioritários (também é a homofobia ou o ódio aos ciganos) não chega para serem mandatórios. Se não estão na lei, não foram sufragados. Se estão, quem chega tem de fazer o mesmo que quem está: cumpri-la.

A ideia de que o Estado pode impor, como constitutivo da nacionalidade e até imperativo para aceder a ela, valores e modos de vida que não foram plasmados na lei é antiliberal e perigosa. Porque o espírito que vale para o estrangeiro acabará por valer para todos, atacando a ideia de que, dentro do chapéu do respeito pela lei, uma comunidade convive com a diversidade de modos de vida e de valores que a torna plural.

Isto é especialmente relevante quando assistimos ao crescimento de um movimento conservador que desrespeita as minorias e os seus modos de vida. Como na extensão do poder coercivo e arbitrário do Estado, que vemos nos EUA, a imigração serve como Cavalo de Troia a uma agenda ultraconservadora, iliberal e autoritária. O que está em causa vai para lá dos estrangeiros. Corresponde a uma uniformização da ideia de nacionalidade e, por consequência, de Nação. De onde, mais tarde ou mais cedo, serão excluídas minorias nacionais, sejam ou não "nativas".

O Estado pode e deve impor a lei, democraticamente sufragada. Não pode nem deve impor modos de vida para lá dela. Poderá, quando muito, promovê-los. E, mesmo assim, dentro dos limites dos valores constitucionais. É curioso que sejam os mesmos que atacam as aulas de cidadania, por não reconhecerem ao Estado o direito de promover valores morais (que estão na Constituição), porque cabe à família fazê-lo, a querer ir muitíssimo mais longe quando se fala de imigração e nacionalidade: ter o Estado, de forma arbitrária e subjetiva, a determinar o que são valores de todos para lá do que a Constituição e a lei definem.»


1 comments:

Albino Manuel disse...

À Bloco, coerentes.

Lei da nacionalidade? Ius soli. Quem nasceu cá é português e ponto final.

Imigração? Acolher. Fazem falta. Há que ser humanista. Curiosamente, da emigração não falam. Provavelmente são burgueses, vão em boa hora. Não há casas? É construir habitação social camarária. Há que deixá-los vir e acabar com as barracas à volta de Lisboa. Não pagam renda social (e não de mercado)? Não podem, coitados, o que não podem ser é despejados.O homem de Loures é o lobo mau mas talvez devessem pedir as casas a Carlos Moedas. Afinal de contas Loures é só o dormitório.

Agrupamento familiar? Venha ele. E os que vierem também têm direito a reagrupamento familiar, e os que vierem a seguir também.

E mudar as leis, para acolher a diversidade, até porque entretanto passaram a cidadãos. Há ghettos? Não, há formas plurais de vida.

O que é que isto vale? Pouco ou nada. São expressões de pensamento legítimas mas quase sem representação parlamentar.

O que as explica? Eu diria que a origem social dos apoiantes do Bloco, burguesia citadina e não o operariado.

Em todo o caso, pelo menos pelos próximos tempos vai ser como o título do quadro de Miró: cão ladrando à lua.