2.3.23

A Bolt ri-se da lei

 


«A pensar nas plataformas digitais, o artigo 12º-A, acabado de acrescentar ao Código do Trabalho, presume "a existência de contrato de trabalho" quando haja fixação de retribuição pelo trabalho efetuado, poder de direção, controlo e supervisão da atividade (por exemplo, através de geolocalização), restrição da autonomia do trabalhador na organização do trabalho, poder disciplinar e utilização de instrumentos de trabalho da empresa (por exemplo, a aplicação ou os sacos térmicos).

O responsável nacional pela Bolt, que garante que Portugal é dos países onde o negócio corre melhor, não se mostra preocupado. Em entrevista ao “Jornal de Negócios”, explicou que não tenciona atribuir contrato de trabalho aos mais de 20 mil motoristas TVDE e quase 20 mil estafetas ao seu serviço. Citando um estudo feito pela própria empresa – o estilo soviético destes patrões que não são patrões é sempre enternecedor –, garante que os “nossos estafetas” (descaiu-se) não querem estes direitos.

Familiarizado com o espírito do direito de trabalho, diz que a lei não é necessária porque quando alguém tem mais de 50% do rendimento pago pela Bolt ela já tem de pagar uma taxa (embora a Uber Eats já tenha dito que nem isso quer). Argumenta com a flexibilidade deste tipo de trabalho, parecendo ignorar que trabalhos com flexibilidade de horário e picos de produção não apareceram com as plataformas e estão contemplados na lei há décadas, com vínculos laborais. O que se faz agora é acrescentar mais esta modalidade.

Como são seis os fatores cumulativos e dois têm de se verificar, é nisso que Nuno Inácio pretende trabalhar. Acredita que, bem feitas as coisas, o risco de as plataformas digitais serem consideradas empregadoras “não será substancial”. Até nos explica um truque possível: “dar, por exemplo, a possibilidade do motorista ou estafeta escolher dentro de um intervalo que preço é que quer fazer”, fazendo assim desaparecer um dos critérios. E ir fazendo isso com todos os critérios, sem mudar realmente nada de fundamental. Ou seja, a Bolt promete encontrar um truque para contornar a lei. Diz que já o fizeram noutros países. As jornalistas do “Jornal de Negócios” perguntaram: “Se a vossa operação não refletir os indícios da lei então o juiz nunca poderá dizer que a plataforma é empregadora. É isso?” Ninguém o pode acusar de falta de honestidade: “É mais ou menos isso”.

E espera que, mostrando que a fuga à lei está à frente da vantagem em relação a concorrentes próximos, que os outros façam o mesmo. As associações patronais ameaçam rasgar acordos que assinaram se houvesse qualquer melhoria na lei para os trabalhadores (entretanto já recuaram, talvez porque lhes prometeram mais umas borlas fiscais). Estes nem isso. Encolhem os ombros e riem-se do Estado. Querem lá saber da lei.

No fim, lá reconhece que pode haver um ligeiro aumento dos custos do serviço. Mesmo com a chico-espertice, a lei terá conseguido alguma coisa para quem fornece a mão de obra, o carro, a gasolina e o seguro a empresas que, mais do que o desenvolvimento tecnológico, que já se generalizou, têm como grande vantagem concorrencial andar à frente dos governos e da lei, aproveitando todas as falhas para fugir a qualquer regulamentação.

O diretor da Bolt não disse que a nova lei punha em causa o seu modelo de negócio. A Bolt tem e espera continuar a ter excelentes resultados em Portugal. Não disse que ela era injusta. Nem se preocupa especialmente em convencer-nos que aqueles são mesmo parceiros e não trabalhadores. Disse apenas e só, com aquela arrogância feudal de quem não tem qualquer receio do Estado ou da justiça, que tenciona contornar a lei. Porquê? Porque pode. Porque estas empresas não receiam os políticos, o Estado, as leis, a ACT e muito menos as greves. Resta saber se conseguem. Em vários países europeus, em mais de 200 decisões, os tribunais têm obrigado a que mudem as suas práticas. Como será por cá?

“Os ricos perderam o medo dos pobres”, escreveu Eric Hobsbawm, em 1989. Não temem que, se não cederem um pouco da riqueza, uma revolta lhes tire tudo. Não têm incentivos para negociar seja o que for. Ainda mais com estes trabalhadores, grande parte imigrantes, pouco organizados, desprotegidos. Esse é verdadeiramente o problema: a balança desequilibrou tanto que a exploração perdeu qualquer noção do limite.»

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