«Há 40 anos que tanta gente não votava. França mobilizou-se para derrotar a extrema-direita que, contra todas as previsões, ficou em terceiro lugar. Esta é a grande vitória da democracia. Para este resultado, contaram as desistências cruzadas. A linha do “nem-nem” (“nem extrema-direita, nem extrema-esquerda”), defendida por alguns macronistas e pela direita tradicional, também foi derrotada.
Três lições: a esquerda pode aliar-se em dois ou três dias, vencendo sectarismos e supostos bloqueios programáticos e derrotando o tacticismo de Macron, que nada conseguiu com esta dissolução expedita e irresponsável; essa esquerda pode liderar a oposição à extrema-direita; e a frente republicana não se faz com um “nem-nem” que tenta impor uma equivalência entre a esquerda progressista e a extrema-direita, para que o neoliberalismo seja tudo o que sobra em democracia.
A segunda parte deste resultado é a frente de esquerda ter-se assumido como a força alternativa de poder que deve ser chamada a liderar uma solução do governo. A França provou que não é preciso inclinar a política à direita para vencer a extrema-direita. A alternativa aos inimigos da democracia não é o fim da política.
Macron é responsável pelo crescimento exponencial da extrema-direita. O obreiro da destruição do sistema partidário francês. Um autoritário que impôs a agenda neoliberal por decreto e com o bastão na mão. Foi a democracia que os franceses salvaram, não ele. Mas não aceitará esta viragem de página sem tentar destruir o que sobre. Não irá aceitar outro papel que não seja o de “Presidente-Sol”.
Édouard Philippe, ex-primeiro-ministro que lidera o Horizons, da aliança presidencial, foi um dos partidários do “nem-nem”. Agora, veio defender um governo com socialistas e verdes, mas sem os “insubmissos”. Agarrado a uma boia que não reconhece a derrota (o Ensemble passa de 245 deputados em 2022 – 350 em 2017 – para 168), finge não perceber que o RN só foi derrotado porque essa posição foi ignorada pelos democratas. A grande maioria dos franceses não acompanhou a equiparação entre boa parte da Nova Frente Popular (NFP) e a União Nacional (RN).
Seguindo o conselho de dividir a esquerda para continuar a mandar no país, Emmanuel Macron pode convidar socialistas e ecologistas a separarem-se da França Insubmissa (LFI) para se juntarem às suas forças. O seu beijo seria o da morte, depois do PS ter ressuscitado através de alianças de esquerda. Se caíssem nisto, partindo uma aliança vitoriosa para deixar que o responsável pelo crescimento da extrema-direita mantivesse a liderança que os franceses lhe negaram, voltariam à estaca zero, mostrando que nada se aprendeu. Se o PS tivesse usado a NFP, que deu esperança a muitos franceses (sobretudo a muitos jovens), como barriga de aluguer, voltaria a tropeçar no seu próprio tacticismo.
Os primeiros sinais dados pelo líder do PS, Olivier Faure, foram de unidade e disciplina no campo da esquerda. E de vontade aplicar o programa que negociaram. Talvez o fantasma de François Hollande, couveiro dos socialistas regressado ao parlamento, não seja mau agoiro, afinal.
Mas o resultado destas eleições deixa a França numa situação muito difícil. A esquerda não tem maioria absoluta – o governo macronista também não tinha e governou, usando várias vezes o artigo 49.3 da Constituição – e o ódio acumulado ao poder autoritário e neoliberal de Emmanuel Macron, que ainda tem a chaves do poder, torna difíceis entendimentos que não preparem o caminho para a vitória de Marine Le Pen, em 2027.
Que deve ser a esquerda a governar, é evidente. Que Melénchon seja a figura unificadora, é improvável. A sua taxa de rejeição é grande. Foi fundamental para fazer renascer da esquerda. Para que ela voltasse a conquistar o voto dos jovens, dos suburbanos das grandes cidades, dos trabalhadores. Para que a esquerda não se transformasse o voto do privilégio. Mas é como Ronaldo: foi indispensável para o crescimento, mas este tempo já não é o dele. Se não se afastar, arrisca-se alimentar fraturas na NFP que Macron (e alguns setores do PS) tentará aproveitar, para recuperar a liderança que lhe foi retirada pelo voto.
Ontem, a extrema-direita não foi derrotada pelo mal menor. Os franceses não votaram de novo na causa para evitar o crescimento da consequência. Mas, se Macron se impuser com a sua teimosia derrotada, se os socialistas cederem a uma secessão suicida, se Melénchon não sair do palco com a sua vaidade persistente, se todos falharem como continuamente têm falhado, 2027 será o ano de Le Pen. Se não repararam, o crescimento continuou.»
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