6.2.22

O tecnofeudalismo e o Spotify

 


«É um dos grandes desafios para os próximos tempos. O que fazer para tornar os gigantes tecnológicos, que deixámos crescer sem qualquer enquadramento, eticamente mais responsáveis, justos e igualitários?

Nos últimos dias muitos congratularam-se por músicos como Neil Young ou Joni Mitchell retirarem a sua música do Spotify, por acolher o podcast de Joe Rogan, que emite falsidades e teorias da conspiração sobre a pandemia, iniciando um movimento de boicote em relação à maior plataforma de streaming. Claro que há razões para criticar a desinformação fomentada, mas nisso nada de novo. Já o vimos acontecer com Twitter, Facebook, YouTube e outros (mesmo se existe a diferença de o Spotify ser “patrão” de Rogan), com discussões sobre limites da liberdade de expressão ou a responsabilidade das plataformas em regular conteúdo.

Discussões válidas – mas nunca se vai ao centro da questão e que é de paradigma económico e de moderação política. Com as atenções a recaírem sobre a multinacional sueca, o que seria estimulante era ver muitos mais músicos — muitos deles lutando pela sobrevivência nestes tempos de pandemia, enquanto os gigantes tecnológicos foram amealhando milhões — erguer a voz para questionar o problema nuclear de plataformas como o Spotify: o valor residual que a maior parte dos criadores obtém a partir dela, a desigualdade e ineficaz política de distribuição de direitos.

O problema do Spotify é igual ao de outros colossos tecnológicos que foram crescendo à frente da legislação. O seu poder tornou-se categórico, hegemónico e pouco transparente. No início, éramos seduzidos pelo serviço barato, funcional e, julgávamos, neutral e livre. Mas há muito que se percebeu que agimos no espaço comercial de empresas cujo modelo de negócio é olhar quer para criadores, quer para utilizadores (e seus dados) como mero produto.

Na realidade, vivemos emaranhados num feudalismo dos tempos modernos. Sob o manto retórico do progresso e inovação, esconde-se muitas vezes o ancestral flagelo da dominação. Instalámo-nos no tempo medieval com as ferramentas da modernidade, por entre acumulação escandalosa de lucros, desigualdades inconcebíveis e um punhado de tecno-oligarcas que vão fazendo fortuna. A “nova economia” deu lugar a uma economia de submissão, de disparidades e restauração de monopólios.

Entre Neil Young e Joe Rogan, o Spotify escolherá sempre o lucro. A solução é, então, sair do Spotify, ou das redes sociais, ou boicotar a Apple, Google, Amazon e outros? Não parece que seja por aí, até porque estamos a falar de instrumentos de comunicação que se tornaram imprescindíveis. Mas é bom ter consciência do chão que se pisa. Entender que quanto mais participamos na vida dessas plataformas, mais serviços nos vão sendo oferecidos de forma a acentuar a dependência. Estamos perante um movimento de monopolização poderoso, em que a lógica é controlar tudo. E, quando algo está fora do controlo, comprar quem representa competição é o objectivo.

Não podemos escapar deste mundo, porque, individualmente, somos mais frágeis do que os algoritmos. Mas é possível reflectir sobre o modo como, colectivamente, nos podemos emancipar, preservando espaços de existência que não estejam dominados por este sistema. É uma discussão política e não tecnológica. Corrigir práticas individuais é possível, mas o repto é a própria estrutura de propriedade de empresas em que a actividade produtiva consiste na criação de valor sob a forma de dados.

O desafio consiste em encontrar soluções que passem pela intervenção política, enquadrando o funcionamento destas plataformas, segundo a lógica dos serviços públicos. A política terá de assumir, com pinças, um papel de moderação em modelos de negócio de estruturas empresariais em que os critérios comerciais não obedecem aos princípios do bem comum. A pressão a desencadear é essa. Caso contrário, nada de substancial mudará.»

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