«Há poucos dias, Evgueni Prigojin, chefe do grupo Wagner, foi ao Mali, a sua maior base em África, onde se fez fotografar de arma na mão e anunciou que ia "fazer uma Rússia ainda maior em todos os continentes". Fez depois uma escala em Damasco, voltou à Rússia, a bordo de um Ilyushin, aterrando em Moscovo. Tomou imediatamente o seu avião pessoal, um Embraer, na companhia de outros chefes do Wagner, entre eles o número dois, Dmitri Utkin, com destino a São Petersburgo. O avião explodiu pouco depois. Dias antes, Prigojin exibira-se na cimeira russo-africana de São Petersburgo. Pouco mais sabemos e o enigma do desastre pode perdurar por muito tempo. Apenas não há dúvidas quanto ao mandador: Vladimir Putin.
Em lugar de saber se o avião foi abatido pela artilharia antiaérea ou, mais provavelmente, por uma bomba escondida numa caixa de vinho, a digressão do mercenário suscita duas grandes dúvidas. "Foi claro durante dois meses que Prigojin foi deixado voar quando e para onde quisesse", disse ao Financial Times uma fonte próxima do Ministério da Defesa russo.
"Agora compreendemos porquê: aquela liberdade era a armadilha em que caiu o chefe dos mercenários do Wagner." Segunda perplexidade: os chefes militares, tal como os chefes dos governos ou das máfias, não costumam viajar no mesmo avião. É patente o excesso de confiança de Prigojin, que passava por ser desconfiado.
Prigojin é o nome que faz os títulos, mas o sujeito desta história é Vladimir Putin. "Os autores de golpes raramente morrem velhos", diz o politólogo Brian Klaas ao magazine The Atlantic. Todos ficaram surpreendidos pelo perdão de Putin ao chefe do amotinamento do Wagner e da "marcha sobre Moscovo," a 23 de Junho.
Putin denunciou a "traição" e a "punhalada pelas costas". Mas a seguir foi clemente e tanto Prigojin como Utkin voltaram à vida normal. "Nenhum ditador se pode dar ao luxo de tolerar este tipo de deslealdade. Em todo este período, Prigojin viveu fazendo Putin parecer fraco, um ditador forçado ao compromisso com o homem que o desafiou, simplesmente porque a Rússia ainda precisava do grupo Wagner na sua desastrosa guerra", argumenta Klaas.
Foram meses anormais. Explica o analista Abbas Galyamov, antigo speechwriter do Presidente: "Prigojin continuar a viver baralhava a nossa compreensão do regime de Putin. A regra era que ninguém podia fazer nada contra Putin. Durante dois meses, tudo parecia virado do avesso. Prigojin criou um tremendo problema a Putin, humilhou-o."
O "czar" sabia certamente que deixar Prigojin vivo reforçava os seus inimigos e a criava novas ameaças. As ditaduras podem organizar pseudo-julgamentos contra opositores. Mas o Kremlin não podia submeter Prigojin a um tribunal marcial: ele sabia demais e vangloriava-se disso. De resto, era popular perante uma parte dos russos: uma sondagem indicou que, depois da insubordinação, tinha a simpatia de 20% dos inquiridos. Putin não perdoou. Soube esperar. Mas a decisão, crêem os analistas, foi tomada logo após o 23 de Junho.
Os efeitos políticos não são ainda claros. Putin voltará a ser temido. E, diz o opositor russo Marat Gelman, é um óbvio sinal para as elites, para as mais liberais e para as ultranacionalistas: "Vocês não podem ser contra a guerra, não podem conduzir a guerra melhor do que Putin. [O general] Girkin e Prigojin eram mais entusiastas sobre a guerra do que Putin, mas foram punidos."
O historiador Dmitri Minic, especialista na Rússia, escreve no Monde: "Longe de ser uma anomalia, a evolução do Wagner e o percurso do seu chefe são uma emanação lógica dos fiascos militares russos numa guerra imprevista e não controlada, das especificidades do regime putiniano, mas também do pensamento e da cultura estratégicos pós-soviéticos. Uma situação extremamente perigosa para elites político-militares pouco aptas às profundas transformações e para um regime interessado na sua própria sobrevivência, mas que não se pode reformar sem assumir o risco de se desmoronar."
Putin deve ganhar a curto prazo. Mas adverte Klaas: "Quando um ditador assassina um alto oficial e não jornalistas, candidatos da oposição e dissidentes, então o medo generaliza-se. (…) Por vezes, erros catastróficos tornam-se mais prováveis – e podem de facto desencadear o fim do regime. Ninguém diz que o mortífero regime de Putin esteja nas últimas horas. Mas, a longo prazo, os custos do aparente assassínio de Evgueni Prigojin podem levar a que o falecido Evgueni Progojin venha a ser o último a rir na sua sepultura."»
Jorge Almeida Fernandes
Newsletter do Público, 25.08.2023
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