20.8.23

As loucas

 


«No dia 24 de Março de 1976, um golpe de Estado derrubou a Presidente argentina e deu início ao período mais obscuro da história do país. Uma Junta Militar, presidida pelo general Jorge Rafael Videla, chegou à Casa Rosada, centro do poder na Argentina, e começou a escrever uma história de terror e violência que durou até 1983 e que fez cerca de 30 mil desaparecidos.

Mas uma coisa que a história já nos mostrou é que mesmo na mais negra das noites existe uma centelha de luz. E fiquem a saber que nenhuma luz no mundo é mais forte do que aquela que nasce directamente do coração de uma mãe.

Gostava de vos pedir que decorassem o nome de Azucena Villaflor e que, um dia, o ensinassem aos vossos filhos e netos. E se alguma vez vos perguntarem qual o motivo para tal ensinamento, não hesitem em responder que este é o nome de uma verdadeira heroína. Azucena é o nome da resistência.

Após a tomada de poder pela Junta Militar, milhares de argentinos foram perseguidos e torturados de forma particularmente cruel. Falamos de crianças, estudantes e trabalhadores, mas também de mulheres grávidas que apenas eram mantidas vivas até ao nascimento dos filhos, que eram depois entregues a famílias apoiantes do regime.

Todos os dias desapareciam pessoas nesta Argentina de escuridão. Todos os dias existiam mães que deixavam de saber do paradeiro dos filhos. Todos os dias as mulheres perguntavam se os seus meninos estariam vivos num campo de detenção ou mortos a boiar no rio da Prata. E estas mães, desesperadas e a precisar de consolo, encontravam-se numa igreja. Mas um dia, as palavras do padre que as aconselhou a ter “santa paciência” fizeram Azucena Villaflor indignar-se e ter a ideia que mudaria tudo.

Azucena terá dito às outras mães de filhos desaparecidos que o melhor seria reunirem-se na Plaza de Mayo, em frente à Casa Rosada. “Somos muitas e Videla terá de nos receber” — afirmou. E no dia 30 de Abril de 1977, as mães assim o fizeram. Eram catorze nesse primeiro dia e decidiram encontrar-se naquele sítio todas as quintas-feiras a partir daí.

Com o passar das semanas, as catorze passaram a largas dezenas e, com lenços brancos atados na cabeça que simbolizavam as fraldas dos filhos, andavam a pares ao redor do monumento de Belgrano, mesmo no centro da praça, desafiando a polícia que impedia ajuntamentos de mais de três pessoas paradas.

Rapidamente, as mães da Plaza de Mayo começaram a levar consigo as fotos dos filhos para provar a sua existência, uma vez que o Governo de Videla continuava a insistir na ideia de que tudo aquilo era irreal, sendo bastante conhecidas as palavras de um capitão do Exército que numa declaração bradou que “essas mulheres são loucas, umas putas loucas de merda”.

Mas nem Videla, capitães ou soldados fizeram com que as mães desistissem e, para provar que falavam verdade, Azucena conseguiu compilar os nomes dos desaparecidos e fê-los publicar num jornal. E este foi o seu fim. A lista saiu para a rua no dia 10 de Dezembro de 1977 e Azucena desapareceu por estes dias, juntamente com Esther Ballentrino de Careage, grande amiga de Jorge Bergoglio, actual Papa Francisco, e María Ponce de Bianco. Descobriu-se anos depois que estas três mulheres, líderes do grupo que teimava em resistir, foram levadas para o mais tenebroso campo de concentração e tortura argentino onde foram cruelmente assassinadas.

Mas nem assim os militares conseguiram esmagar a coragem das mães que debaixo de uma repressão extremamente violenta continuaram, quinta-feira após quinta-feira, a apresentar-se na Plaza de Mayo. A polícia soltou cães, golpeou as mulheres, prendeu-as e lançou gás lacrimogéneo. Mas elas nunca se renderam. Os militares talvez não conseguissem percebê-lo, mas subestimaram a força das mães. E, pelos filhos, as mães nunca desistem.

Em 1978, por altura da realização do Campeonato do Mundo de Futebol na Argentina, quando o Governo tentava o mais que podia limpar a imagem internacional do país e a imprensa se concentrava em Buenos Aires, as mães insistiram em enfrentar a repressão e saíram à rua com os seus lenços brancos na cabeça e as fotografias dos filhos desaparecidos. E foi assim que, no dia 1 de Julho de 1978, as emissoras mundiais contaram a todos o que se passava na Argentina.

Em 1980, as mães da Plaza de Mayo foram nomeadas para o Prémio Nobel da Paz e, mesmo não tendo vencido, este foi um duro golpe para o governo militar do país, que, ao tentar apelar ao patriotismo dos argentinos e desviar a atenção deste assunto, declarou uma guerra contra a Inglaterra pelas ilhas Malvinas. Como era esperado, o Exército argentino foi esmagado e o descontentamento popular tornou-se impossível de conter. Em 1983, Raúl Alfonsin foi eleito democraticamente Presidente da Argentina.

Em 1992, as mães da Plaza de Mayo venceram o Prémio Sakharov de liberdade de pensamento e o seu trabalho e persistência conseguiram que a maioria dos membros da Junta Militar fosse presa por crimes contra a humanidade. Conseguiram ainda identificar muitos corpos e 256 crianças desaparecidas das quais 137 quiseram e puderam conhecer as suas famílias biológicas.

Estas mães perderam os filhos, mas nunca perderam a coragem. São a cara, o corpo e a voz da resistência no feminino e do poder da maternidade. Azucena representa cada uma delas.

E fazendo uma espécie de regresso ao presente, imagino como se sentiriam muitas delas ao perceber que, em 2023, as eleições primárias do seu país foram ganhas por um homem como Javier Milei, que, entre outras coisas, nega as alterações climáticas, é favorável à legalização da venda de órgãos humanos, quer tornar mais fácil o acesso às armas de fogo e acredita que a educação sexual serve para destruir as famílias.

Os argentinos vivem descontentes, esmagados pela dívida ao Fundo Monetário Internacional e pela inflação acima dos 115%. A pobreza cresce. E este é, obviamente, o caldo perfeito para o crescimento de populistas como o despenteado de patilhas gigantes que mensalmente sorteia o seu salário e que vai gritando que acabará com a casta de poder no país.

Mas eu quero acreditar que a Argentina vai resistir ao canto da serpente e que este admirador de Donald Trump não conseguirá chegar à Casa Rosada. Sei que tudo aponta em sentido contrário e que as probabilidades estão todas a seu favor. Simplesmente não posso nem quero aceitar que o país das mães da Plaza de Mayo permita que isto aconteça. O país que resistiu no feminino. O país onde as mulheres deram uma lição de coragem ao mundo. O país que mostrou a força das mães.

Eduardo Galeano escreveu que, “na Argentina, as loucas da Plaza de Mayo foram um exemplo de saúde mental, porque se negaram a esquecer num tempo em que a amnésia era obrigatória.”

Que os argentinos não esqueçam agora o legado de Azucena e de cada uma destas mulheres.

Que o populismo não vença.

Que a luz continue a rasgar a noite escura.»

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