1.2.25

Memórias da Gronelândia

 


«Há alguns anos, no âmbito de funções que tinha na Assembleia da NATO, tive ocasião de passar algum tempo na Gronelândia. Agora que Trump se lembrou de incluir a grande ilha na sua lista imperial – coisa que em bom rigor não lembrava a ninguém – as memórias dessa viagem regressaram e algumas ajudam-me a ver fisicamente o que ele quer. E como, com excepção de algumas trágicas mortes de pescadores nos confins da pesca do bacalhau que lá estão enterrados, poucos portugueses conhecem a Gronelândia, e nenhuns estiveram em alguns dos sítios que visitei, aqui ficam algumas dessas memórias. Deixo de lado os motivos clássicos da ganância imperial, como sejam as riquezas minerais ou a geopolítica do Ártico, valorizada pela abertura de passagens marítimas que até agora não eram navegáveis, ou as asneiras que ouvi de alguns dos nossos ecologistas preocupados pelas florestas locais, numa terra onde não há praticamente árvores que confundiam com a Sibéria.

A viagem à Gronelândia, feita num avião militar dinamarquês, evitou a pequena parte da ilha onde se concentra a maioria da população e foi para pequenos locais com aeroportos de gravilha ou gelo. Essa viagem incluiu a grande base americana de Thule, um posto de observação fundamental para detectar um ataque russo com mísseis intercontinentais. Os EUA têm por isso, já, uma base militar na Gronelândia, que em nenhuma circunstância foi posta em causa pelo seu parceiro da NATO, a Dinamarca.

Tive ocasião de assistir a um exercício militar dessa vigilância, depois de passar por uma zona onde se encontravam grandes computadores, e onde, por coincidência, um marine caminhava atrás com arma aperrada, caso algum terrorista infiltrado se atirasse aos computadores, tão importantes eles eram do ponto de vista estratégico para processar os dados dos grandes radares que são o núcleo central da base. O exercício foi feito numa sala em que, numa mesa, estavam três oficiais que tinham formação em engenharia, um dos quais uma mulher e, à sua frente, grossos manuais com uma sequência de procedimentos. Uma vez dado um alarme do lançamento de mísseis russos, os militares seguiam página a página os manuais, verificando se não se tratava de falha no sistema de radares em Thule, se os mísseis correspondiam a um ataque hostil aos EUA e quais os alvos previsíveis e, feitas estas verificações, e confirmando que se tratava de um ataque, havia então uma comunicação ao Norad, o comando estratégico sediado numa montanha do Colorado, anunciando que se estava numa guerra nuclear.

Quer os radares de Thule quer o Norad são presenças habituais nos filmes de guerra de Hollywood, mas ver ao vivo é outra coisa, e tive oportunidade de ver ambos.

Outro local visitado nessa viagem, em que se sobrevoou toda a Gronelândia, foi Station Nord, uma base dinamarquesa a 1700 km a norte do Círculo Polar Ártico, onde um pequeno grupo de militares mantém vigilância sobre a parte mais longínqua e inóspita, como aliás quase toda a ilha, da Gronelândia. Como aconteceu com outras instalações militares e aeroportos na ilha, foram os americanos na II Guerra Mundial e nos primeiros anos da Guerra Fria que construíram a Station Nord. No controle do Mar do Norte os alemães precisavam de ter estações meteorológicas na ilha para poderem prever o tempo muito instável de onde operavam os seus submarinos para cortar as rotas de abastecimento dos EUA para o Reino Unido e a União Soviética. Em Station Nord havia mais cães do que homens, e a dureza do clima era visível nas sucessivas instalações abandonadas quando as suas fundações eram destruídas pelo gelo.

Muita coisa já estava a mudar devido às alterações climáticas, principalmente no lado ocidental da ilha, onde já se podia navegar até certo ponto. Um comandante militar dinamarquês estava furioso com os organizadores de cruzeiros que levavam os seus navios com turistas para observar os icebergues, numa zona onde não havia mapeamento dos fundos marítimos e onde, caso houvesse um acidente, se estava a milhares de quilómetros de qualquer ajuda. Após várias tentativas de proibir os cruzeiros turísticos sem sucesso foi apenas ameaçando as companhias seguradoras que se conseguiu limitar as viagens.

Evitando Nuuk, a capital, a viagem quase não encontrou a população inuit que vive da caça e da pesca em condições muito difíceis, com elevada taxa de alcoolismo, e de facto marginalizada da riqueza da potência que administra a ilha. É por aqui que certamente Trump vai tentar pressionar o governo dinamarquês, que lhe tem respondido à letra e reforçou a presença militar na Gronelândia. Podia ainda, de facto, a primeira-ministra ter mandado Trump fazer o chamado “Bear Jump”, uma daquelas coisas machistas que se fazem na ilha e que dá direito a um diploma: mergulhar nas águas geladas e depois ser içado rapidamente para um barco pelos marines. Custa um pouco, mas o diploma é bonito.

E, já agora, se os EUA invadirem a Gronelândia, aplica-se o artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte?» 


0 comments: