2.8.24

Ministra da Saúde: o conflito e a mentira como fuga

 


«Ainda antes de ser ministra, Ana Paula Martins ficou conhecida pelo estrondo com que se demitiu da administração do Hospital de Santa Maria, menos de um ano depois de tomar posse. A relação conflituosa com todos os que a rodeavam foi a marca que deixou no maior hospital do país. Quando tomou posse como ministra, disse e escrevi que isso poderia vir a ser motivo de preocupação para Montenegro. Não foi por especial clarividência, mas porque todos os dados permitiam traçar o perfil que se confirmou plenamente em apenas três meses. O oposto ao talento diplomático do ministro da Educação, numa área também complexa, mesmo que dele discorde profundamente.

Para perceber o que se está a passar naquele ministério basta revistar rutura de Ana Paula Martins com os obstetras de Santa Maria, que escreveram uma carta objetando a transferência deste serviço para o São Francisco Xavier, e cujo diretor clínico falava em “demissões por razões políticas”, a propósito das exonerações levadas a cabo pela administração hospitalar.

O estilo confirmou-se com a demissão de Fernando Araújo, inevitável depois da ministra fazer saber, pela imprensa, que a Direção Excutiva do SNS tinha 60 dias para apresentar um “relatório da atividade exigido pela tutela”. Voltou a confirmar-se quando acusou de “liderança fraca” as administrações dos hospitais, acusações que corrigiu pouco depois, dizendo que estava a criticar “toda a cadeia de liderança” do SNS – pior a emenda que o soneto. Ana Paula Martins é um automobilista em contramão que se vê como exceção à incompetência que a rodeia.

Na responsabilização dos outros, a ministra limita-se a continuar o que vem sendo a linha de pensamento do PSD na área da saúde: o SNS é mal liderado em todas as cadeias da sua estrutura e a solução é entregar o que se pode aos privados, que estes se encarregam de fazer melhor. Pouco importa que os médicos sejam os mesmos, que existam abundantes exemplos as mostrar que os casos mais complicados são remetidos do privado para o público, ou que os seguros de saúde, representando 40% do mercado, só respondam por 5% da despesa de saúde. Não deixa de ser sintomático, aliás, que no plano de emergência apresentado pelo governo não se fale na valorização e estabilidade das carreiras no SNS, não espantando por isso o início das greves dos médicos, como estão já a ter lugar.

Tendência para a mentira e a omissão

Para lá da tendência para o conflito, Ana Paula Martins tem uma relação tortuosa com a verdade, sendo desmentida por documentos apresentados publicamente, tanto no caso do INEM como da Direção Executiva.

O primeiro caso foi a divulgação de números falsos sobre doentes oncológicos a aguardar cirurgia. A novela que escreveu para o INEM, com a administração cessante a demitir-se por causa da incapacidade em renovar os contratos com os helicópteros de emergência, também é exemplar. Ficou provado por emails entregues no Parlamento que, durante meses, a direção pediu o reforço da dotação para abrir um novo concurso, depois do anterior ter sido anulado por todas as empresas apresentaram valores acima do estipulado. Como é evidente, o reforço do investimento exige decisão da tutela e isso ficou claro quando a nova direção, já escolhida por Ana Paula Martins, se demitiu uma semana depois, confirmando as palavras da anterior.

Os contantes desmentidos ao que Ana Paula Martins vai dizendo levaram o governo a optar por esconder a informação. Foi isso que fez com as urgências encerradas, numa tentativa de esconder que a situação está a piorar, mesmo depois da entrada em vigor do “plano de emergência”. O mesmo com a produção dos hospitais. Perante as perguntas do PS no Parlamento, o governo lá foi obrigado a dizer o que se passava e os números de junho deste ano são simples de perceber: face ao mesmo período do ano, as urgências obstétricas fechadas aumentam 40% face a 2023. O que parece ter caído a pique são as notícias e diretos sobre o tema.

A fama que vem de longe

As mentiras de Ana Paula Martins vêm de longe. A sua demissão da presidência do Conselho de Administração de Santa Maria aconteceu já depois de Marcelo Rebelo de Sousa anunciar eleições legislativas antecipadas para março. Nas notícias e comentários que ocuparam dias inteiros a falar sobre “o caos no SNS”, poucos perderam tempo para reparar que, antes de assumir o cargo, Ana Paula Martins tinha sido vice-presidente do PSD. O seu nome já era falado para ministra da Saúde e as mal-amanhadas razões para a sua demissão só reforçaram a ideia da motivação política.

Na origem da decisão, soube-se à altura, estava a sua objeção ao financiamento das Unidades Locais de Saúde com hospitais universitários, como é o caso de Santa Maria. A crítica era que estas unidades, com custos acrescidos da exigente formação médica nas universidades, recebiam o mesmo valor que todas as outras Unidades Locais de Saúde. Uma informação falsa, como se constata pelo relatório produzido por Fernando Araújo em resposta ao pedido do Ministério, e onde se percebe que “as ULS com hospitais universitários (São João e Santo António, no Porto, Coimbra, Santa Maria e São José, em Lisboa) recebem €1892 anuais por capita e as restantes €948. No caso do Santa Maria, o valor total fica acima dos €680 milhões”.

O que aconteceu com o diretor Executivo do SNS, um homem consensualmente competente, com toda a classe de administradores hospitalares e com dois diretores do INEM mostra que a personalidade conflituosa de Ana Paula Martins, já evidente quando dirigia o Hospital de Santa Maria, é tóxica num setor em dificuldades e junto de uma classe descontente. A sua tendência para mentira e omissão, foram evidentes nas razões apontadas para a sua demissão do Santa Maria, quando já se sabia candidata a ministra, na novela sobre os contratos com os helicópteros de emergência, nos números que divulgou das operações de oncologia e na tentativa de esconder quais eram as urgências fechadas.

O embate com anos de demagogia

Mas nada disto é o fundamental. O fundamental ultrapassa Ana Paula Martins. É a incapacidade de cumprir as expectativas criadas pelo PSD depois de anos a alimentar uma narrativa simplista e demagógica sobre o SNS.

A ideia de que um “plano de emergência” ia resolver debilidades do SNS através do reforço dos protocolos com os hospitais privados era infantil. Em primeiro lugar, porque as novas regras criadas pelo atual governo estão a atrasar a contratação de novos médicos, com concursos atrasados e métodos de seleção mais complexos e morosos. “Nivelou-se por baixo”, garante o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, Nuno Jacinto.

Depois, porque o constrangimento de profissionais também afeta os privados, nomeadamente na obstetrícia, mesmo que estes não precisem de cumprir os números mínimos decidido pela Ordem dos Médicos para as urgências “unilateralmente” e sem competência para tal de acordo com a PGR. A resposta do anterior bastonário, agora deputado do PSD, foi uma ameaça pouco velada: os hospitais são livres de seguir ou não o regulamento, “sendo que a responsabilidade será sempre dos hospitais se alguma coisa correr menos bem”.

Sempre falando do preconceito ideológico dos outros, a AD construiu, nos últimos anos, um discurso estritamente ideológico (quando não tem motivações piores) que encontra no privado todas as soluções para o SNS. Perante a complexidade dos problemas, restam duas hipóteses: mentir ou culpar outros. São as duas coisas a que esta ministra verdadeiramente se dedica.»


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