31.7.24

Se o povo não quer Maduro, Maduro tem de sair

 


«Apesar de vários observadores internacionais não terem sido aceites pelo regime de Caracas – incluindo os da União Europeia, como é natural, tendo em conta as sanções impostas –, estiveram muitos observadores internacionais nas eleições venezuelanas. Entre eles, da ONU e do Centro Carter, com credibilidade indiscutível. Este último já pediu a divulgação das atas eleitorais. Neste momento, é isso que está em causa: transparência. Mas o cancelamento do relatório do Centro Carter e a retirada do seu pessoal do país não augura nada de bom.

Como disse o presidente do Chile, Grabiel Boric (de esquerda), é difícil acreditar, para usar um eufemismo, nos resultados anunciados pelo Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela, controlado pelo regime. Seria um fenómeno político que um presidente com os resultados económicos de Nicolas Maduro conseguisse uma maioria absoluta de votos. Ainda mais quando, em profunda crise económica, os eleitores foram em massa votar. Todo o comportamento do governo – dos bloqueios a candidaturas (até de esquerda) à opacidade do processo, que se resolveria com a divulgação de todas as atas das mesas eleitorais, passando pelo facto da CNE ter falado de "uma tendência contundente e irreversível” quando faltavam contar 20% dos votos e Maduro teria 51,2% – torna muitíssimo plausível a tese da fraude eleitoral.

O chavismo falhou. Não falhou sempre. A Venezuela não era um país próspero para a grande maioria da população, antes de Chávez. Era igual a boa parte dos países daquela região: uma cleptocracia em que quase toda a riqueza ficava nas mãos de uma pequena minoria de privilegiados. E isso explica a popularidade inicial de Hugo Chávez, que chegou ao poder pelo voto e pelo voto lá permaneceu muito tempo, com forte apoio das camadas mais pobres do país, desde sempre ignoradas pelo poder.

Os resultados iniciais foram positivos. Ainda assim, logo nessa altura, escrevi que a tragédia política era quase inevitável. O movimento que levou Chávez ao poder não veio das bases populares, de sindicatos, do ativismo cívico e político. Veio da elite militar, que Chávez, conhecedor do destino de tantos governos de esquerda latino-americanos às mãos de golpes militares, soube mimar e comprar. Todo o seu perfil era o de um caudilho. Como é tradição latino-americana, aliás.

O exemplo de Lula

Na fase inicial, o chavismo conseguiu redistribuir riqueza num país fortemente desigual. Por isso ganhou eleições. Hoje, distribui pobreza, tendo substituindo uma elite económica corrupta por uma nova burguesia “bolivariana” igualmente corrupta. Conseguiu conquistar a soberania sobre os seus próprios recursos num continente onde impera o extrativismocolonial – sem falar disto é impossível compreender quase todos os conflitos políticos na América Latina ou em África. A interferência externa é um fantasma bem real para todas as nações com recursos que não estão do lado do poder. Mas não conseguiu mudar estrutura económica do país, deixando-o no mesmo lugar para o futuro.

A questão geral que se levanta é se, num país fortemente desigual e onde vigora o extrativismo colonial, é possível fazer mudanças por via daquilo a que chamamos democracia liberal. É possível que a democracia não seja meramente superficial quando boa parte da população está excluída da economia formal e de quase todos os direitos sociais? É possível os governos eleitos determinarem o futuro de um país quando potências muito mais fortes dependem da exploração barata dos seus recursos?

Lula mostrou que é possível fazer diferente sem pôr em causa as regras democráticas. Mostrou que é possível retirar milhões da pobreza, defender a soberania e respeitar a democracia. É verdade que só o conseguiu em tempo de vacas gordas, quando a redistribuição não implicava retirar poder e dinheiro às elites económicas do país. Mal a coisa ficou difícil arranjaram forma de derrubar inconstitucionalmente o governo de Dilma e de meter Lula na prisão, impedindo-o de concorrer a eleições que provavelmente venceria.

Mesmo assim, Lula percebeu que se saísse das baias democráticas, mesmo quando o sistema as ignorou, estaria perdido. Mesmo depois do golpe constitucional, mesmo depois de uma prisão ilegal, respeitou as eleições e as instituições. Não terá sido fácil. Mas percebeu que só dentro dessas baias se liberta um povo da tirania da miséria e da desigualdade. Quando se esmaga a democracia também se esmaga a luta pela igualdade. Sem democracia social, a democracia política é um jogo para os privilegiados, mas a democracia social é uma mentira quando se tira ao povo o direito a determinar o seu futuro.

Dirão que Lula não mudou o sistema económico do Brasil. Nem Chavez ou Maduro o fizeram, na Venezuela. O chavismo, na versão revolucionária inicial ou na sua fase mais decadente, limitou-se a despejar petróleo sobre os problemas e a mudar as dependências na divisão internacional de produção, onde a Venezuela continuou a ser fornecedora de matérias primas, só que agora para potências mais distantes. Era evidente que quando o petróleo deixasse de pagar o bolivarianismo o regime e a sua nova elite se agarrariam ao poder e aos privilégios. E, apesar das sanções, Maduro nem se pode queixar da sua atual posição externa. Desde que a guerra na Ucrânia começou, clientes improváveis voltaram a bater-lhe à porta. Talvez isso ajude a explicar, aliás, a invulgar reação relativamente moderada do ocidente.

O mau currículo da oposição

Com comunicação social alternativa, ainda alguns governadores da oposição e partidos políticos, a Venezuela não é uma ditadura pura. Mas a cada eleição que passa, com cada vez menos instituições nas mãos da oposição, com cada vez menos poder para o parlamento, com a destruição de uma justiça independente e com fim da comunicação social mais plural, é nisso mesmo que se está a transformar, às mãos de Maduro.

Ao viciar estas eleições, o ainda presidente da Venezuela pôs fim à soberania popular. Todas as conquistas sociais que ainda quisesse atingir perderiam o seu valor. Só que já nem isso existe. Com uma política económica feita à imagem da degeneração do regime, a miséria e a fome tomaram conta da Venezuela. A sobrar alguma coisa, seria a resistência à potência colonial do continente. Não chega para segurar o regime. Ainda assim, talvez seja isso e a memória de uma mudança social real no início deste século a explicarem porque é que ainda há tantos venezuelanos a defender um governo que destruiu, em dez anos, 70% da sua economia. Só que parece ser dos mais pobres que vem o maior desespero. Exatamente aqueles que levaram Hugo Chávez ao poder.

É verdade que, logo em 2002, a oposição supostamente democrática tentou um golpe contra o presidente legitimamente eleito. Apoiada, como tem sido costume nestes casos, pelos Estados Unidos, que tinham naquele produtor petrolífero um ativo estratégico que não queriam dispensar. E não demoraram a impor sanções (que nunca aplicaram a ditaduras amigas) e a tentar impor presidentes. Foi o caso de Juan Guaidó, um homem em que os venezuelanos nunca tinham votado. Uma manobra de Donald Trump, esse exemplo de respeito por resultados eleitorais, que foi seguida por vários países, incluindo Portugal. Como explicou o senador democrata Chris Murphy, “tentámos construir um golpe na Venezuela em abril de 2019 e ele explodiu-nos na cara”.

É verdade que a oposição quase nunca reconheceu resultados eleitorais, mesmo quando perdeu realmente. É verdade que a candidata de facto a estas eleições, María Corina Machado, pediu, entre 2018 e 2020, o “uso da força internacional” no país, num apelo claramente dirigido aos Estados Unidos. Infelizmente, o confronto, na Venezuela, não é entre democratas e antidemocratas, entre patriotas e corruptos. Essa é a parte difícil em muitos conflitos naquele continente: raramente ele é pela democracia, mas entre alternativas económicas e dependências externas que estão contra ou a favor da democracia conforme precisem ou não dela.

Ver Javier Milei, que mal chegou ao poder esmagou os protestos com brutal violência e tenta uma suspensão democrática para aplicar o seu programa revolucionário, a falar da democracia na Venezuela deixa isto bem claro. O silêncio do mundo perante duas tentativas golpe na Bolívia – uma delas depôs governo para depois perder as eleições – mostra que andam quase todos a escolher o seu líder autoritário. O desespero, em vários destes países latino-americanos, é ser muito difícil encontrar quem acredite na democracia quando o lado oposto promete uma forte mudança social e económica. E muito difícil encontrar quem, fora do continente, tenha um critério coerente.

O isolamento de Maduro

A alternativa a Maduro pode não ser democrática e patriótica, como se apresenta. Mas não é isso que está em causa. O que está em causa é a vontade de mudança manifestada pelo povo soberano e um regime incapaz de distribuir mais do que miséria e repressão. Em nome do povo, só fala o povo. E o povo parece ter escolhido o que qualquer povo escolheria perante a atual situação da Venezuela: derrubar um governo que lhe oferece pobreza. Derrubar a nova elite que tomou o lugar da anterior e que foi incapaz de mudar o sistema económico para sustentar as políticas sociais que a levaram ao poder. Parece ter votado contra Maduro, apesar da trágica oposição, muito provavelmente. E isto inclui os mais pobres, que sempre foram leais aos chavismo, mas que sentem a violência da crise económica dos últimos dez anos.

Quando os presidentes do Chile e da Colômbia – numa vertigem isolacionista, Maduro já expulsou o embaixador do Chile, governado pela esquerda –, pressionam o regime a aceitar a derrota, percebemos que estamos perante o estertor. Ele pode ser mais ou menos violento, mas o fim está à vista. Sobram-lhe aliados com quem não tem afinidades ideológicas, apenas proximidade oportunista, como a Rússia ou o Irão. O último sinal foi dado por Lula, ainda antes da sua conversa com Joe Biden – seria excelente que os EUA, com um trágico currículo na defesa da democracia na América Latina, se envolvessem o menos possível. Contrariando a posição do seu partido, o presidente brasileiro pediu para Maduro dar acesso às atas eleitorais.

O que está em causa, nestas eleições, é, antes de tudo, o respeito pelo voto popular, em relação ao qual não pode haver adversativas. Isto não obriga a qualquer simpatia pela alternativa que se apresenta. Não a tenho. Nada no seu passado me leva tê-la. Mas obriga a defender a soberania popular que se exerce através do voto. Parece evidente que Maduro perdeu. Maduro deve sair.»


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