1.8.24

Bloco de notas para a época de banhos do Governo e da oposição

 


«Na sua merecida ida a banhos, o primeiro-ministro e o líder da oposição levam como caderno de encargos a resposta a uma pergunta incontornável: por que razão continuam colados nas sondagens depois de tanto se empenharem em ver quem dá mais em reduções de impostos, aumentos ou cortes de portagens aos portugueses? O país político cristalizou-se numa espécie de reticências. Caiu na armadilha do compasso de espera. As mãos largas para abrir os cordões à bolsa para calar protestos, seduzir corporações e apaziguar a tensão política tornaram-se regra. Com a folga orçamental deixada generosamente pelo anterior Governo, o desleixo e o empate não são o fim do mundo. Mas exigem reflexão. Felizmente, a receita não os premeia. O empate das sondagens é uma forma subliminar de os portugueses manifestarem o seu desconforto pela hegemonia da política partidária sobre a política do interesse público.

As férias chegam no exacto momento em que o duelo começava a ficar indecoroso. Depois da batalha dos anúncios, ou das aprovações de medidas como o IRS e a isenção das Scut, a guerra das mãos largas projectava-se já para o próximo Orçamento. O campo de batalha definido, o da “negociação”, não passa de um engodo. Já percebemos o que o Governo quer disputar nesse terreno: a exclusividade de ser bom para tudo o que mexe. Como sabemos o que quer o PS: aparecer como um paizinho bondoso, a quem o bom povo possa agradecer um aumento ou um subsídio. Haverá na dita “negociação” alguma coisa politicamente crucial, uma reforma, uma visão, um desígnio? Se há, não se consegue ver.

O que até agora se tem passado resume-se a um simples princípio: a AD e o PS estão concentrados em olhar para os interesses do seu umbigo. O país não passa de um cenário vago. Para muitos, os que analisam a vida pública como uma partida de xadrez, não há alternativas. Quando em causa está um Governo frágil e uma oposição forte, abre-se um parêntesis no qual uns e outros lutam pela hegemonia. Tudo bem, é a democracia a funcionar. O problema, porém, não está no modo como Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos se digladiam: está na substância que usam, esse velho doping da dádiva, do regabofe da distribuição a tudo e todos apenas porque há dinheiro no cofre.

O Governo de Montenegro é, nesta perspectiva, como a Rússia vista por Churchill: “Um enigma embrulhado num mistério dentro de um enigma.” Sabe-se da sua visão em favor da iniciativa privada, do estímulo fiscal às empresas ou dos jovens. Desconhece-se tudo o resto. Tornou-se um balcão de atendimento de reclamações. Até agora, dedicou-se a comprar estabilidade, pagando pelo silêncio das corporações. O seu elenco é um luxo se comparado com a manta de retalhos em que se transformaram os últimos governos de António Costa, mas isto de pouco serve. Aqui e ali, como na Educação, na Economia ou na Coesão, vislumbram-se sinais de quem quer governar a sério. Mas onde está uma visão abrangente, um programa, uma ideia de país?

Nota-se por ali o instinto de sobrevivência natural num governo minoritário, uma vontade de mostrar serviço, um desejo de ser amado, uma preocupação em cortar cerce qualquer foco de desestabilização. Não se detecta, pelo contrário, qualquer empenho em tomar medidas que vão para lá da emissão do cheque, em ousar ideias com impacto a longo prazo. Está algures entre o novo-rico desregrado e a corporação de bombeiros sempre pronta a apagar fogos. Não se trata seguramente de um Governo. Entre 1985 e 1987, o Governo minoritário de Cavaco Silva lançou as bases do planeamento e do ordenamento do território, a nova geração de políticas de ambiente, os prenúncios das privatizações, da moderna política de ciência ou a nova geração de políticas autárquicas. Foi premiado com uma vitória de 50,2% nas eleições que se seguiram.

Infelizmente, o tacticismo de matriz eleitoralista do Governo não encontra no PS um antídoto eficaz. Os socialistas caíram no ardil de uma parte do comentário político, sempre disposto a transformar o debate público numa arena de boxe, e entraram no jogo do ombro a ombro. Se o Governo quer "x" reduções no IRS, eles querem "x" mais "y"; se Montenegro pensa nos jovens, Pedro Nuno Santos ataca com a extinção de portagens nas Scut. O que se prenuncia nas “negociações” sobre o Orçamento é, está escrito, um leilão de dádivas, não uma definição de prioridades. Como o PSD, o PS caiu na tentação de acreditar que o que importa é ser bonzinho, é não escolher e não priorizar, é não afrontar interesses ou reivindicações, é dar tudo a todos na esperança de semear para colher uma votação expressiva quando houver eleições. Como Luís Montenegro, Pedro Nuno Santos ainda acredita que o eleitorado português permanece na fase da infância, o tempo em que as crianças se calam com um rebuçado.

É por isso que, passados quatro meses desde o empate das legislativas, os dois partidos continuam empatados. Com esta gestão casuística, ancorada no curto prazo, que eleitor do PS ou do PSD tem razões para mudar de campo? Que motivos têm os descontentes do Chega para reconsiderar? Com a disputa entre um e outro para ver quem mais prebendas distribui, como esperam que um eleitorado que deu uma maioria ao campeão da austeridade, António Costa de seu nome, acredite que o país e o mundo mudaram assim tão radicalmente de um ano para o outro? Como é possível entender que, depois de tanto tempo a dizer-se que não havia condições para dar tudo a todos, vivamos agora o milagre que permite cortes fiscais a eito ou aumentos salariais a rodos para quem seja capaz de organizar uma manifestação suficientemente ruidosa? Quando a esmola é grande, o pobre desconfia.

A persistência do empate é, por isso, um poderoso manifesto político. Uma forma elegante de dizer que não merecem mais. Entre um facilitismo e outro, venha o diabo e escolha. O que pode ser capaz de mudar opiniões é a coragem de abrir caminhos. De propor reformas no Estado, de racionalizar gastos, de exigir mais eficiência nos serviços públicos, de ousar mudanças profundas na Justiça. Medidas que impliquem tensão, ousadia e coragem. Iniciativas que nos garantam um país mais moderno e justo e um Estado mais ágil.

É difícil fazê-lo em minoria? Sem dúvida. Mas se a minoria servir apenas como cenário para o eleitoralismo, como está a ser, por que razão há-de um eleitor mudar de opinião? Talvez Montenegro e Pedro Nuno Santos possam perceber sob o sol e o mar o que está em causa com o empate. Um sinal de desdém por esta forma velha e relha de fazer política, quem sabe.»


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