28.3.23

Apoios sociais ou a realidade posta a nu

 


«O mínimo que se pode dizer é que a oposição erra o alvo nas suas críticas ao pacote que o Governo anunciou para combater os efeitos da inflação. Talvez por mero maniqueísmo, seguramente com pouco sentido das prioridades, critica o que deve aplaudir e poupa palavras para o que deveria denunciar.

Mas vamos por partes. É muito pouco sensato dizer, por exemplo, como veio dizer o PSD, que as medidas “chegam tarde”. Bastava, aliás, ter dado alguma atenção às declarações de Nazaré da Costa Cabral na passada semana. Vivemos numa conjuntura particularmente instável. À guerra e à inflação, veio agora juntar-se a ameaça de mais uma crise financeira. Para um país como Portugal, com uma dívida pública demasiado elevada e que, nas palavras da presidente do Conselho das Finanças Públicas, não nos “tira completamente do radar dos mercados financeiros”, será assim tão bizarro que se espere pelo resultado da execução orçamental de 2022 para definir, em concreto, a dimensão de apoios públicos para mitigar os efeitos da conjuntura?

Percebo o desnorte da direita com a transfiguração socialista com as “contas certas”, mas convenhamos que o facto de o PS ter acertado o passo em matéria de finanças públicas não deveria ser razão para o PSD se transformar – por mero impulso contraditório – no partido da irresponsabilidade financeira. Fez muito bem Medina ao esperar pelos dados do INE.

É também difícil atacar a opção de devolver às famílias, naquela que é uma conjuntura muito difícil, a folga orçamental gerada em 2022. É certo que se podem e devem criticar alguns aspetos concretos na forma como os apoios são estruturados. Não percebo, por exemplo, porque é que se opta por um aumento dos funcionários públicos ao invés de se escolher um alívio em sede de IRS que possa beneficiar também os trabalhadores do setor privado. Não me parece que os efeitos da inflação se abatam mais sobre uns do que sobre os outros. Também percebo que possa criticar o facto de o Governo, com a sua obsessão propagandística, anunciar uma redução do IVA antes ainda de ter a certeza de conseguir garantir que os efeitos da medida se façam efetivamente sentir nos bolsos de quem precisa. Mas a verdade é que o princípio geral de devolução do excedente orçamental às famílias é difícil de criticar por alguém que o queira apreciar de boa-fé.

Mas o que verdadeiramente espanta não é nada disto. Estamos todos habituados a uma certa tribalização e teatralização da discussão política. O que verdadeiramente espanta é que a oposição, que tanto critica (e nesse particular, muito bem) a política dos “Power points” não se tenha dado ao trabalho de reparar no slide número nove da apresentação de Medina. É que está lá tudo aquilo sobre o que verdadeiramente interessaria refletir: o Governo estima que existam cerca de três milhões de beneficiários dos apoios agora anunciados para as famílias mais vulneráveis. Leu bem. São três milhões.

É esta a realidade que estes apoios põem a nu e é esta realidade que importa discutir. Há três milhões de portugueses que o próprio Governo, num descuido de honesta candura, reconhece como “vulneráveis”. Eu traduzo. Há três milhões de portugueses (sensivelmente um terço de todos nós) que precisam da ajuda do Estado para fazer a sua vida com um mínimo de dignidade. Seja porque deixaram de conseguir pagar a renda da casa, seja porque não conseguem já juntar o suficiente para alimentar as suas famílias. Ora, a constatação deste facto não é senão a constatação do estrepitoso falhanço do nosso modelo de desenvolvimento económico e social. Mais do que apoios (que ninguém discute na atual conjuntura), estes portugueses precisariam de liberdade, autonomia e de independência. Precisariam, mereceriam viver num país capaz de gerar a riqueza que os dispensasse da misericórdia de um Estado cada vez mais disfuncional na hora de atender, com um mínimo de decência, às suas necessidades mais prementes.

Ninguém contesta, reitero, a necessidade de acudir, nesta emergência, às consequências da presente crise. Mas, quando um terço (!) da população de um país perde independência e autonomia para controlar o seu próprio destino, não terá chegado a hora de olhar, de uma vez por todas, sobretudo para as causas de tamanho falhanço coletivo?»

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