1.4.23

Um “pide” moderno

 


«Este é um artigo inútil. Nada do que aqui está, seja o que escrevi, seja o que “acontece” no que escrevi, muda alguma coisa. Se não achasse que é minimizar uma das figuras mais criativas da literatura, Dom Quixote de la Mancha, o Cavaleiro da Triste Figura, podia usar a classificação comum de “quixotesco”. Mais: não só não muda nada, como vai ser cada vez pior. As mais poderosas forças do mundo, boas, semiboas, más e muito más, vão todas no mesmo sentido e sem controlo. O controlo é do domínio da pura ficção. Quem quer usá-las usa e infelizmente há muita gente a querer usá-las, a começar por aqueles que deviam ter consciência dos seus riscos. Há pouca coisa realmente mais apocalíptica nos dias de hoje do que isto. O que é “isto”?

Imaginemos um “pide” moderno, e há muitos “pides” modernos. Senta-se para o trabalho diante de um conjunto de ecrãs, ligados a várias bases de dados, usando quer programas comuns e motores de busca vulgares, quer especializados. Qualquer serviço pidesco pode hoje comprar, num mercado mais especializado, programas e motores de busca usados por polícias e ladrões, serviços de informação nacionais e internacionais, que procuram não só na superfície da Rede mas também na sua parte “negra”. Eu já os vi a funcionar e garanto-vos que nem imaginam o que encontram, dados e contexto.

O “pide” moderno é jovem, como os últimos recrutamentos da PIDE em vésperas do 25 de Abril, e nem sequer precisa de ser um nerd nem um hacker, mas apenas de saber usar os seus instrumentos, que tem diante dos olhos. A maior parte do que recolhe é legal, qualquer um o pode fazer, mas alguma parte está na fronteira do abuso e outra é mesmo ilegal. Se houvesse uma suspeita fundamentada de crime, podia ser autorizado, por um juiz, o acesso aos metadados ou a escutas, mas eu estou a falar da vigilância sobre as pessoas comuns e não sobre criminosos.

O “pide” moderno começa a registar os meus dados. Sai de casa – horas. Ele sabe onde moro e pode contar o tempo entre a saída e o próximo sinal recebido por causa do pequeno-almoço, a factura. A factura está cheia de informação que o Estado, através do fisco, se arroga de ter: na factura bastava o valor global, mas está muita outra coisa. Está o que comi e bebi, está se tomei o pequeno-almoço sozinho ou acompanhado.

Depois passo por um multibanco, e levanto dinheiro e faço pagamentos. Durante o dia todo, os cartões de crédito registam um rasto de acções que, acompanhado pelas facturas, já permitem saber muitas coisas. Quando Monica Lewinsky comprou uns livros para dar a Clinton, um deles, Vox, de Nicholson Baker, uma ficção em que há uma relação de “sexo telefónico”, isso interessou ao procurador que perseguia Clinton. A livraria recusou-se, e bem, em mais um acto quixotesco, a dizer que títulos de livros tinham sido comprados. Eu podia, como faço quase todos os dias, também ir a uma livraria, e mesmo sem comprar o Vox (que já tenho e li) alguns títulos podem sobressaltar o “pide”, que não é muito de livros, mas pode ir ver os resumos à Rede – por exemplo, o Agente Secreto, de Conrad, levantou-lhe as sobrancelhas tratadas, quando foi a um destes barbeiros tão modernos como o “pide”. Ou uns fanzines anarquistas com títulos bombásticos ou o Mapa ou a Batalha, já para não falar no Avante!. Ele aí ganha o dia, para colmatar a falta de material das redes sociais, em si mesmo uma falta suspeita, de quem não tem Facebook, nem Instagram, nem qualquer outro fluxo de fotografias de almoços, pequenas e grandes fúrias, boatos e calúnias, nem sequer frases crípticas como “que farei quando tudo arde”, suspeita de incendiário que cita um tipo com nome nas ruas Sá de Miranda. Será que ele pensa incendiar alguma coisa na Rua Sá de Miranda? Embaixada, escritório, loja? O “pide” procura na Rede o que é que há na Rua Sá de Miranda de Lisboa, Porto, Coimbra. Que trabalheira, tanta Rua Sá de Miranda. Ou será uma escola secundária, ou será uma pessoa?

Depois, vêm os dados do almoço e do jantar, o que comeu, com quantas pessoas comeu. Uma é suspeito, duas é ainda mais suspeito, três começa a conspiração. A seguir chegam os dados da farmácia e, mais importante ainda, da Via Verde. Onde entrou e onde saiu, quanto tempo demorou. Parou numa área de serviço para ter um encontro, ou para entregar sub-repticiamente um pacote? Acede-se então às câmaras de vigilância. Saiu no Porto, será que a Rua Sá de Miranda onde “tudo arde” é no Porto? Bom, há ali umas instalações universitárias, e perto está o Jardim da Arca de Água e, como ele comprou o Ambientalista Céptico, será que vai envenenar os patos? O “pide” toma nota para posterior investigação. E por aí adiante.

A questão é simples: se houver uma deriva autoritária (e em muitos aspectos estas tecnologias “empurram” para essas derivas), o “pide” moderno não precisa de qualquer lei especial, só acesso. O “pide” lastima-se mentalmente pelo facto de os humanos ainda não terem chips como os cães e passa em revista os mil e um argumentos de eficácia que justificariam os chips. O problema é que os cidadãos comuns também cedem ao comodismo e à facilidade de andarem com a ficha médica e o número fiscal metido no corpo.

Como nos defendemos? Deixando de lado, ir para uma zona sem rede, não usar multibanco nem telefone, não ter conta bancária, etc., etc., e mesmo assim tudo imperfeito, não há defesa possível. Este é o mundo onde nascemos e onde vamos morrer, e nesta matéria é mau, muito mau, destruiu duzentos anos de luta pela privacidade, pela individualidade e por direitos dos cidadãos face ao Estado. Pode tudo ser mitigado, mas de forma pouco eficaz.

O “pide” anotou: atenção, ele está denunciar os nossos métodos, e vai à ficha electrónica e classifica-o como “libertário tecnológico”, partidário do general Ludd, ou um seguidor do Unabomber. Perigoso.»

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1 comments:

Maria João Brito de Sousa disse...

Nunca na minha vida me senti tão feliz por nem sequer ter conta bancária. Talvez me iluda, mas acredio que a pobreza me confere alguma protecção.

A ilusão de se ser menos vulnerável do que a esmagadora maioria, também tem o seu valor nos tempos que correm...