4.6.23

Quem quer ser jacaré?

 


«Olho para a fotografia da mulher de corpo perfeito e dentes impecavelmente brancos e não consigo evitar o desconforto provocado pela inveja. O cenário dourado grita um luxo que jamais me estará acessível e a sola vermelha dos sapatos elimina qualquer margem para enganos: há um ordenado meu em cada um dos pés da mulher que posa para a câmara como se o mundo inteiro lhe pertencesse por direito.

E se cada um dos elementos da fotografia vale por si só, nenhum grita requinte de forma tão alta como os brincos, em forma de serpente, que lhe adornam as orelhas. São absolutamente deslumbrantes e não resisto a procurar o seu preço na Internet. Rio muito quando descubro que são bastante mais caros do que os sapatos e que o seu preço se assemelha ao que paguei pelo meu carro de família.

Sabem, sempre ouvi dizer que “quem nasceu para lagartixa nunca chega a jacaré” e, na idade em que me encontro, perto dos quarenta, o melhor que posso fazer é aceitar o destino e perceber que nem todos os luxos vêm forrados de dourado e a regurgitar dinheiro e opulência. Há outros luxos, menos impactantes em fotografias, mas que valem mais do que qualquer coisa que o dinheiro possa comprar. Se são luxos de lagartixa? Possivelmente. Mas acredito que até os jacarés os invejem.

Escrevo esta crónica embalada pelas vozes de duas amigas de uma vida que tagarelam na sala ao lado. Viemos passar uns dias fora, e, neste exacto momento, não me ocorre maior luxo do que este. Podiam chover brincos dourados, sapatos de sola vermelha e vestidos de alta-costura que eu ia sempre preferir os chinelos de cinco euros e o vestido em segunda mão que envergo neste momento se isso significasse não perder o ombro, a mão e a gargalhada destas duas.

Aliás, se for honesta comigo própria, terei de admitir que o meu desempenho em saltos altos se assemelha ao de uma pata com problemas na anca e que brincos demasiado grandes e pesados sempre me incomodaram. Os vestidos, por outro lado, parecem-me óptimos, mas não consigo evitar pensar no esforço que exigem de cada vez que a bexiga dá sinal.

Há uns anos, uma amiga ofereceu-me um tratamento naquele que era, na altura, o spa mais luxuoso da região. E eu lá fui, toda contente, a pensar na incrível experiência que me aguardava. Mas mal entrei na sala vi a minha expectativa começar a morrer. O cheiro a incenso era de tal forma intenso e adocicado que só um milagre me salvaria da dor de cabeça do ano. E a massagem? Diferenças de temperatura imensas, óleos, pedras e texturas que pouco mais faziam do que deixar-me nauseada.

A massagista bem me mandava relaxar e concentrar na música ambiente, que, aos meus ouvidos, parecia tocada por uma criança num xilofone. Mas eu, lagartixa tola, cheia de vergonha de interromper a sessão, ali fiquei, caladinha e a aguentar, até ao exacto momento em que uma pedra quente colocada nas minhas costas desferiu o golpe final à experiência e vomitei como se não houvesse amanhã. O verdadeiro requinte, verdade?

Nesse dia, só me lembrava do meu pai, que torce o nariz de cada vez que passa por um restaurante gourmet. E escusamos de lhe dizer que aquela comida é uma experiência e que é um luxo comer ali. Luxo gastronómico, para ele, é comer um prato de mão de vaca com grão, com tempero marcado e um toque de malagueta. E pouco lhe importa o ambiente onde o faz desde que o seu entorno seja asseado, a comida boa e as pessoas simpáticas. O verdadeiro luxo, diz ele, é ter prazer quando se come e ficar de barriga cheia.

E eu volto a olhar para o tablet onde vi a fotografia que começou esta crónica e percebo que estou bastante mais apaziguada. Não que, de repente, tenha deixado de ver a beleza. O luxo funciona como um íman e eu jamais lhe serei imune. Há uma sensualidade no luxo que o torna magnético. Mas o seu espectro é enorme e acho que vivo bem com a parte dele que o dinheiro não pode comprar. Afinal, sempre gostei de mão de vaca com grão. E o resto posso sempre continuar a ver em revistas, na televisão e nas redes sociais.

É verdade que o luxo me parece lindo e me faz suspirar. Mas são as vozes das minhas amigas que me fazem rir, as comidas da minha mãe que me aconchegam e as sapatilhas que me fazem correr. Ser lagartixa, às vezes, também pode ser incrivelmente luxuoso.»

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