9.6.23

Cristina e a religião do mérito

 


«Se olhássemos para fora da política talvez tivéssemos previsto a chegada de Trump. Ou saberíamos que a extrema-direita estava instalada no espaço público anos antes de Ventura ter chegado ao Parlamento. Nos magistrados populistas, nas redes sociais inundadas de ódio ou nos programas da manhã que vendem justicialismo entre receitas e entrevistas de vida. É fora da política que estão os sinais do seu futuro. De tal forma, que a política que temos tende a retratar, como uma fotografia, o que já deixou de ser.

Para ver algum do futuro da política recomendo a excelente reportagem do “Público” sobre as sessões motivacionais que Cristina Ferreira anda a fazer pelo país. Esgota a lotação de pavilhões onde cabem milhares de pessoas dispostas a pagar para tocarem no seu sucesso. No essencial, é uma importação do que existe há décadas nos EUA, onde o discurso motivacional faz as vezes da proteção social, ensinando a pescar quem não tem cana, anzol ou mar à frente. É um pouco estranho à cultura católica, mas mais compreensível para os protestantes e, ainda mais, para o movimento evangélico que varre o mundo com a sua religiosidade pragmática e utilitária. As religiões adaptam-se ao que o mercado da fé pede delas.

Pode-se pensar que a fé destas pessoas é em Cristina Ferreira. Não me parece que haja ali idolatria. Cristina será o pastor que dirige a liturgia laica do sucesso. O que ela oferece, dando o seu exemplo e o de heróis como Pedro Chagas Freitas, que foi operário e já vendeu um milhão de livros, ou de Fernando Daniel, que viveu numa casa sem sanita e hoje vende milhares de discos, é a esperança de que o paraíso exista na terra, dependendo exclusivamente da vontade de cada um.

Os intelectuais (o anti-intelectualismo é a luta de classes dos que não querem perturbar o poder do dinheiro) e os “anti-Cristina” (ela é o povo e os que a atacam desprezam o povo) queriam que ela falhasse. Mas “quanto mais me põem para baixo, mais eu ganho balanço para ir para cima”. Ao partilhar o ressentimento descabido numa mulher que nada em dinheiro e em poder, Cristina cria um laço com quem sente que merecia mais do que tem. Os que a criticam, criticam o que eles poderão vir a ser. Falhando ela, falham todos os que também queiram ser deuses de si mesmos. O ressentimento faz parte da cultura do mérito. Se somos donos do nosso destino, o resultado do falhanço não será a revolta, construtiva de alternativas sociais, mas o ressentimento que corrói a política. Parecendo que é emancipadora, por pôr nas mãos de cada um o seu futuro, a fé no mérito é, como todas as religiões dominantes, a fé do poder que ela serve. A desigualdade é um obstáculo para ser superado por cada um de nós, não para pôr em causa. O “sonho americano”, a popularização ideológica de uma mentira (os EUA são dos países com menor mobilidade social no ocidente), é tanto mais necessário quanto maior é a desigualdade, assim como a fé que nos promete felicidade noutra vida é tão mais necessária quanto maior é a miséria nesta vida.

A exibição da riqueza faz parte do ritual da superação. Cristina Ferreira não exibe o luxo para humilhar quem a segue. Pelo contrário. Mostra o milagre aos céticos. Mereceu piadas quando, dirigindo-se a 10 mil pessoas no Altice Arena, revelou que uma imagem de Nossa Senhora lhe tinha aparecido nuns sapatos que custaram €490. “Para muitos de vocês é o que ganham num mês”, disse, falando dos “célebres sapatos da sola vermelha que já está muito gasta porque os usei muito”. Tudo medido: do sinal de aprovação divina da riqueza e ao esforço a que ele está associado. A mesma simplificação simbólica de todas as religiões. Nada para rir. É a religião do capitalismo que nos guia. Sem comunidade, sem superação política ou coletiva. Esforço individual, prémio, luxo. Está no discurso da IL ou nos Louboutin santificados de Cristina.

É sabido que Cristina acalenta o sonho de ser Presidente. De que serve a riqueza sem a glória? Coisa que se terá agravado quando Marcelo, por simpatia, a terá entusiasmado para a ideia. A soberba de quem nunca expressou uma posição política querer ocupar o mais alto cargo político tenta todos os vaidosos, da entertainer ao vice-almirante. O provável é acontecer o que aconteceu a Fernando Nobre: desconhecendo os códigos da política, derrotou-se em combate. Até ao dia em que esses códigos deixarem de existir, para espanto dos que os conhecem.

A perda de poder do Estado, a globalização económica, a crise de todas as instâncias mediadoras e a atomização da sociedade não estão a destruir apenas as democracias. Estão a destruir a política. Essa, que vê mérito de todos na capacidade de uma comunidade conquistar, por via da cooperação, o sucesso coletivo. A crise da política é a crise da comunidade com um devir partilhado. Como grande parte dos profetas, Cristina não pensou no mundo que nos propõe. O seu discurso é fruto, com inegável sucesso no mercado das frustrações, aquilo a que os malditos intelectuais chamam hegemonia cultural.»

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