22.4.23

Marcelo está a preparar os portugueses para a dissolução do Parlamento

 


«A autobiografia do David Lodge tem um título lindo – Quite a good time to be born. Lodge nasceu em 1935, em Londres, e não viveu a infância e juventude em tempos espectaculares: tinha quatro anos quando começou a II Guerra e lembra-se de ir para os abrigos durante o Blitz, experiência que conta naquele que é talvez o seu romance mais autobiográfico, o "Longe do Abrigo".

O título é interessante porque é muito provocador e humano. Todos nós achamos que o "nosso tempo" foi "quite a good time to be born". Eu, que ainda nasci na ditadura como tantos portugueses, tenho maravilhosas recordações de infância. É uma contradição humana.

O que nunca haverá certamente é "quite a good time to be dead". Os governos começam sempre com o estado de graça do "good time to be born", mas com geringonça, sem geringonça e agora com maioria absoluta, a verdade é que este Governo tem sete anos. E praticamente todos os dias o Presidente da República vem informar o país que pode mesmo haver "quite a good time" para o Governo ser morto.

O que disse hoje o Presidente em Braga? Que a dissolução do Parlamento seria uma "má notícia", mas que "às vezes, tem de haver más notícias". "Se tiver de haver que seja o mais tarde possível". Pede estabilidade mas reconhece a instabilidade em curso: "Todos nós agradecemos. Agradecem os cidadãos e agradece o Presidente da República, que fica dispensado de uma decisão que é sua e só sua". Marcelo acredita que evita a dissolução falando nela todos os dias, enquanto ao mesmo tempo prevê, desde já, que aconteça uma "má notícia"? A verdade é que esta sexta-feira apelou mesmo à existência de um "governo-sombra" para o caso de este ter que ser substituído e a possibilidade de, em sequência, se formar um Governo com base num "pacto de regime". Isto é o bloco central, porque os governos de iniciativa presidencial foram retirados da Constituição em 1982. Marcelo está a preparar o país para a dissolução da Assembleia da República.

Não será, e o Presidente reconhece, "quite a good time" para o Governo ser morto. "Seria uma má notícia – e nós normalmente dispensamos as más notícias – ter de introduzir um factor adicional político complementar, a meio deste período de execução de fundos e de enfrentamento da situação económica e financeira existente".

É verdade que o PS e Governo vivem num clima de fim de festa. Por mais medidas positivas que o executivo apresente e que António Costa vá passear para os supermercados com o mesmo objectivo com que já atravessou várias feiras do país – campanha eleitoral –, a ideia de uma falta de autoridade, ou de uma diminuição enorme da autoridade de um dos homens mais autoritários do país, é visível. Uma prova disto é Luís Montenegro, que tem sido até aqui um frágil líder do PSD, parecer ter renascido do seu torpor.

A trapalhada do parecer sobre os despedimentos da CEO e do chairman da TAP por "justa causa" pode ser semântica, como disse o secretário-geral adjunto do PS, João Torres, mas não é por isso que deixa de ser uma trapalhada, substantivo usado até à exaustão nos tempos do Governo Santana Lopes. Então havia papel ou parecer da TAP que não podia ser revelado por razões de Estado e depois, segundo Medina, o papel era o relatório da Inspecção de Finanças? E afinal não há parecer, mas há o argumentário das razões de Estado para a justa causa baseado no relatório da IGF? Os governantes devem estar muito esgotados, numa versão benévola da coisa.

António Costa gostaria de esmagar o seu ex-ministro das Infraestruturas Pedro Nuno Santos, mas o que se está a ver é que o destino de Costa e de Pedro Nuno estão totalmente ligados. Mesmo com Pedro Nuno afastado da fotografia (e até com vitórias como os lucros da TAP e da CP), o Governo vai ter que retirar conclusões do inquérito da TAP. Costa já disse que era "doa a quem doer". Assistimos em directo a uma automutilação do colectivo governamental, do qual o primeiro-ministro é o principal responsável.

A obsessão pública de Marcelo Rebelo de Sousa em preparar os portugueses para a dissolução tem muitos aspectos negativos, porque, no meio da instabilidade geral do Governo, vem acrescentar instabilidade à instabilidade, admitindo-se que está a fazer avisos em nome da estabilidade. Mas quem aterre no país e ouça os responsáveis políticos confia que está tudo por um fio.

Do discurso de Braga há uma coisa para concluir: Marcelo sonha patrocinar uma espécie de bloco central, a que chamou esta sexta-feira "acordo de regime". Ou seja, cumprir aquilo que enquanto líder do PSD fez com o primeiro-ministro António Guterres. A vantagem desta ideia é afastar de vez da esfera da governação o Chega que, a cada dia que se passa nesta confusão contínua, sobe nas sondagens. É sempre "quite a good time to be alive"

Ana Sá Lopes
Newsletter do Expresso, 21.04.2023 (1ª parte)
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