30.6.23

A troika voltou: o regresso do mantra "ai aguenta, aguenta"

 


«Há muito tempo que não apanhávamos com uma daquelas frases castigadoras dos tempos da troika, segundo as quais vivíamos "acima das nossas possibilidades" ou gastávamos tudo "em mulheres e álcool" e depois "pedíamos ajuda", nas imortais palavras do antigo presidente do Eurogrupo, o holandês Dijsselbloem.

Christine Lagarde, ao anunciar que não é para já que o BCE inverte a estúpida trajectória da subida de juros – que está a empobrecer todos aqueles que têm créditos à habitação, que são muitos portugueses, uma vez que a decisão económica mais racional para uma família não é, infelizmente, arrendar casa –, veio-nos recordar, para quem andava com eventual nostalgia da humilhação a que fomos submetidos em discursos do passado, que a Europa é o que é. Se às vezes parecia que tinha sido dado um passo à frente (como nas ajudas da covid-19 e o PRR), veio por estes dias a senhora Lagarde recordar que aos pobres compete morrer à fome e aos ricos, como ela e os seus pares, ditar regras absurdas para, acima de tudo, proteger o lucro das empresas. A frase em que Lagarde pede que não haja aumento de salários e apela ao fim do apoio dos governos às famílias é todo um tratado sobre a tirania europeia.

Estamos assim tão longe do tempo em que a aristocracia mandava e os servos da gleba obedeciam? Michael J. Sandel, no seu magnífico livro A Tirania do Mérito, demonstra como era razoavelmente menos humilhante ser governado por um aristocrata (era um acaso de nascença, como ter olhos azuis ou castanhos) do que ser governado por alegados "meritocratas" alcandorados a cargos de poder efectivo, que governam sem serem eleitos, não dão contas a ninguém e têm vencimentos astronómicos para "mandarem" os governos europeus desprotegerem as suas populações mais frágeis.

Sandel conclui que esta "tirania do mérito", assim como o desaparecimento dos partidos trabalhistas, é a mãe do crescimento da extrema-direita. A verdade é que (quase) toda a gente parece estar a dormir na forma.

Não é a primeira vez que António Costa critica a política de combate à inflação do BCE e esta quinta-feira voltou a fazê-lo.

"Não tem havido suficiente compreensão por parte do BCE da natureza específica do ciclo inflacionista que temos estado a viver. Hoje é mais ou menos claro que o aumento dos lucros extraordinários tem contribuído mais para a manutenção da inflação do que as subidas salariais e não compreender a natureza específica deste ciclo inflacionista limita muito a capacidade de o enfrentar, porque se não acertamos bem no diagnóstico a terapia raramente acerta". A frase de António Costa é dura, mas o poder dos primeiros-ministros e dos ministros das Finanças é bastante limitado.

Fernando Medina também conversou com a presidente do BCE a manifestar a sua discordância, o Presidente da República sugeriu que a presidente do BCE deveria ter mais cuidado nas suas intervenções, pelo alarme social que produzem e também o líder do PSD está contra o aumento dos juros do banco central.

São posições correctas mas o essencial mantém-se, com o BCE a preparar a nossa bancarrota moral. Quem julgava que em 2024 haveria algum alívio nesta trajectória alucinada de aumentos dos juros do BCE pode tirar o cavalinho da chuva. Os falcões europeus acalmaram-se com a crise da covid-19 mas voltaram rapidamente e em força. Ai aguenta, aguenta, como dizia o banqueiro Fernando Ulrich.»

Ana Sá Lopes
Newsletter do Público, 29.06.2023 (excerto)
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