1.7.23

No tempo em que as paredes falavam outra língua

 


«Esta fotografia faz parte de um conjunto de milhares de fotografias que chegaram ao Arquivo Ephemera em negativos, na sua maioria dos anos 1975 até à década de 80. Não foram tiradas por um fotógrafo profissional, mas por um jornalista da Margem Sul que as usou para o seu trabalho, mas acima de tudo motivado pelo seu interesse e curiosidade. Quase todas foram guardadas sem serem reveladas. O que lá está é o Portugal dos anos seguintes ao 25 de Abril, manifestações, comícios, reuniões políticas, cartazes, pichagens, dirigentes partidários, despejos, chegadas ao aeroporto de retornados, ocupações e desocupações, tropa na rua e polícias, espectáculos, artistas, bastidores, equipas e jogos de futebol, pavilhões de empresas, restaurantes, tudo.

No seu conjunto, são uma verdadeira cápsula do tempo, retratando muitos aspectos desses anos, em particular do PREC e da descolonização, olhando para as tensões políticas, mas também para o drama das pessoas apanhadas do lado errado da história, como é o caso dos retornados. À distância de quase cinco décadas, é, mesmo para quem viveu esses anos, um outro mundo.

Veja-se o retrato do mural, mais pichagem do que mural, do PPD que ilustra este artigo. Não há metadados, como agora se diz. Não sei onde ele se encontrava, provavelmente Lisboa, nem a data exacta, embora o uso da designação PPD aponte para os anos 1974-6, e o seu conteúdo, com apelo ao voto, ou para a eleição à Assembleia Constituinte em 1975 ou para as primeiras eleições legislativas de 1976. Presumo que é mais provável serem estas últimas.

O PPD, constituído de forma sui generis, não encaixando em nenhuma das tradições ideológicas dominantes na política europeia, nem nas respectivas internacionais, revelava-se como o maior partido criado depois do 25 de Abril. Era um partido novo, cuja estrutura fora feita de raiz, agrupando elementos da Ala Liberal, oposicionistas, membros da maçonaria e republicanos moderados, e muita gente que afluiu à vida política depois do 25 de Abril. Embora mais tarde e em certas organizações, como no Porto e no interior, houvesse alguma transumância de quadros da Acção Nacional Popular, como, aliás, aconteceu no PS, nesta altura as fichas de inscrição dos novos militantes eram cuidadosamente escrutinadas por uma espécie de “serviços secretos” do partido, que afastavam toda a gente que se verificava ter ligações com a ditadura.

Era, para usar o vocabulário actual, um partido “vencedor”. Ficara em segundo lugar em ambas as eleições de 1975-6, com votações à volta de um milhão e meio de eleitores, face aos dois milhões do PS, deixando muito para trás o PCP e o CDS. Estava no Governo, e preparava-se para empatar com o PS no número de concelhos ganhos nas próximas eleições autárquicas posteriores a este mural, 115 versus 115. Então aí a diferença com a FEPU (de que fazia parte o PCP) e o CDS era abissal.

Este mural foi feito por várias mãos e muito provavelmente não era “oficial” e é muito anterior ao recurso de agências de comunicação e outros “especialistas”. É, no verdadeiro sentido da palavra, espontâneo e ingénuo. Tem uma imagem principal, a de uma pomba (ou uma gaivota) transportando um ramo de oliveira, um misto da letra da canção de Paulo de Carvalho Somos livres, com a sua gaivota que “voava, voava” e do símbolo da paz, com origem num desenho de Picasso, e que fazia parte dos movimentos da paz pró-soviéticos. Há um segundo desenho mais pequeno com uma flor e dois corações unidos por uma seta, em que “eu” e o PPD estavam ligados por uma declaração de amor entre namorados. O símbolo do partido, as três setas, também lá estão e a palavra PPD é repetida nove vezes.

As inscrições são de vanglória, “o PPD vai ganhar”, há apelos ao voto, mas todas as outras são significativas. O voto no PPD era “contra a ditadura” e era um voto pela “liberdade”, e há quatro “vivas”: ao PPD, um muito apagado à JSD, ao “povo” e… à “social-democracia”. Há depois duas palavras, uma cortada e outra “infantil”, que não se percebem porque a fotografia não mostra o muro todo. Não é impossível, pelo tipo de algumas letras, que crianças tivessem participado na pichagem, mas também pode ser que o mural ocupe uma parede em que já havia outra inscrição. Não é muito importante.

Querem perceber o sentido completo da frase de L. P. Hartley sobre o “passado como país estrangeiro”? Aqui está.»

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1 comments:

JHS disse...

"Somos Livres" é uma canção de Ermelinda Duarte e não de Paulo de Carvalho. Surgiu, pela primeira vez, numa peça levada à cena no Teatro Estúdio de Lisboa, encenada por Luzia Maria Martins. Viva o 25 de Abril!