29.6.23

O racismo tornou-se visível porque os seus alvos se tornaram visíveis

 


«Sempre que um pequeno ou grande caso de racismo se torna notícia, como o do post da PSP anunciando candidaturas para o curso de oficiais de polícia, em que aparecia um cadete negro (há muitos outros com brancos), as pessoas bem formadas perguntam-se: o que se está a passar para se ver tanto ódio e preconceito? Rigorosamente nada. Os comentários que ainda consegui ler no Twitter, e ainda apanhei muitos deles, são os que leio quotidianamente nas redes sociais e, não tivesse tanto selvagem bloqueado, leria nas minhas. E nada disso é diferente do que ouvia em desabafos ou conversas corriqueiras nos cafés, autocarros e táxis antes das redes transformarem em letra que fica o que se perdia em conversas soltas e assim era mais fácil negar.

A única razão para isto ter sido notícia é ter-se dado o caso de o alvo ser um cadete de polícia, o que resultou num curto-circuito em que os racistas atacavam uma instituição que geralmente defendem cegamente, com ou sem razões para isso – a mesma polícia que aparece em inúmeros relatórios internacionais por péssimas razões e é hoje a instituição mais respeitada pelos portugueses. Seguindo a lógica de um dos comentários, um polícia tinha cor de bandido. Isto é o que um racista militante pensa e o que um racista automático sente sem sequer pensar.

A gravidade da chegada de André Ventura ao Parlamento não é ter reforçado um racismo bem entranhado na nossa sociedade, é tê-lo trazido à superfície, legitimando-o a partir de um lugar de poder. Ventura é um papagaio de sentimentos primários e, com ele, as pessoas perderam a vergonha de dizer no espaço público o que diziam no quotidiano semipúblico (e isso faz diferença). Uma das razões porque apreciam a figura é, aliás, porque as libertou deste constrangimento. Afinal, não pensavam nada de mal.

Também não é mentira que a extrema-direita cresça, entre muitas outras razões que não cabem aqui, como reação. As minorias começaram a levantar cabeça e já não aceitam o lugar subalterno onde eram "integradas". Os insultos ao cadete negro só aconteceram porque vai havendo mais negros na polícia e porque a PSP, depois de várias acusações de racismo, se sente constrangida a dar visibilidade a essa nova realidade, num anúncio.

As pessoas, muito para lá dos eleitores do Chega, só chamam "monhé" ao primeiro-ministro porque um descendente de indianos chegou à liderança do Governo. O racismo ganhou centralidade no debate público porque pessoas racializadas passaram a ter visibilidade em lugares onde se exerce alguma autoridade e não apenas nos espetáculos e no desporto, onde podiam ser admiradas e, já agora, insultadas. No futebol, os insultos não passarem a ser notícia por acontecerem, mas porque os visados começaram a dizer "basta”.

Este país é tão profundamente racista que bastou uma deputada negra dar mais nas vistas para um caudal nunca visto de insultos racistas a ter submergido. Bastou um ativista negro traduzir em público um sentimento muito forte nos bairros periféricos onde as minorias são tratadas como lixo pelas forças de segurança para uma petição com mais cem mil assinaturas exigir a deportação de um cidadão português e um juiz pôr-se do lado de um cadastrado para defender a sua honra perante o negro atrevido.

Vivemos décadas convencidos de que éramos menos racistas do que o resto dos europeus. Se isso fosse verdade seríamos um estranho fenómeno, já que fomos os últimos a descolonizar e dos últimos a ter qualquer debate livre e democrático sobre o tema. A invisibilidade pública do nosso racismo resultava da invisibilidade pública dos seus alvos. Resultava de mais racismo estrutural, não menos.

Sem vermos os escravizados das estufas de Odemira, da apanha das amêijoas de Alcochete ou do incêndio na Mouraria poderíamos também continuar a acreditar que recebemos muito bem os estrangeiros, lançamos pontes interculturais e tudo o mais que cabe nos discursos do “dia da raça”.

A nossa maior minoria cultural nacional representa menos de 1% população e isso chega para alimentar boa parte discurso de um partido com 10% nas sondagens. Imaginem se fôssemos realmente cosmopolitas e tivéssemos a diversidade de França, da Alemanha ou do Reino Unido.

Não somos um povo extraordinariamente tolerante subitamente invadido por modas europeias de ódio e racismo. Somos um povo que, através das redes sociais e da legitimação política do preconceito de sempre, se olha no espelho que herdou. Podemos continuar a fingir que nada vemos. Ou podemos enfrentar o passado e o presente. Não é para nos autoflagelarmos. É só para assumir o problema e tentar resolvê-lo.»

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1 comments:

joão viegas disse...

Sem esquecer que os Portugueses emigrantes noutros paises europeus, apesar de terem sidos eles proprios vitimas de discriminações, e talvez por causa do famigerado "complexo do capataz" transformaram-se hoje, não na sua totalidade, como é obvio, mas de forma importante, numa base eleitoral solida para os partidos racistas e xenofobos nos tais "outros paises europeus". Em França, por exemplo, a Le Pen, em 2017, declarou que se ganhasse as eleições, iria festejar a vitoria num restaurante português que ela costuma frequentar !

Somos um povo racista, pois claro, e não é de hoje.

Boas