«Para exibir a inutilidade da ONU e exigir o Nobel da Paz, Donald Trump congratulou-se por ter acabado com sete guerras em sete meses, misturando escaramuças, conflitos de poucos dias, tensões que se mantêm e duas guerras inexistentes — entre a Sérvia e o Kosovo (um acordo de normalização económica sem qualquer sinal de confronto) e entre o Egito e a Etiópia (meras tensões diplomáticas por causa de uma barragem, que a última guerra foi no século XIX). De fora ficaram, claro, guerras reais, como na Ucrânia e em Gaza, que Trump jurara que acabaria num ápice, até amuar com os seus responsáveis por não lhe fazerem a vontade. Para o herdeiro mimado, o Nobel tem a mesma função de quase tudo o que faz: alimentar o seu ego inseguro. E para isso servem todas as cimeiras, negociações, visitas de Estado: evitar a birra do bebé grande que se transformou no homem mais poderoso do mundo.
Não sei se Trump tem consciência da mentira, se a acha irrelevante ou se a ignorância não lhe permite fazer esta distinção. Sei que, há não muitos anos, se um Presidente dos EUA inventasse, perante a Assembleia-Geral da ONU, ter posto fim a duas guerras inexistentes, e isso não resultasse de uma gafe, o tema seria a sua saúde mental. Foi com falhas menores que desconfiámos de Biden. Não é assim com Trump porque, tal como todos os que lhe copiam o estilo, os critérios para os líderes forjados por este tempo são diferentes. A mentira é detetada pela bolha que se informa pelos meios que usávamos no passado. Mas uma realidade paralela segue o seu caminho. Não é que haja mais ignorância, mas horas de scroll nas redes dão a ilusão do saber. E estamos só no início da distopia, ainda sem o impacto mais profundo do conforto da inteligência artificial capaz, que nos dispensa o pensamento crítico. O ser humano está, como um demente, a desligar-se da realidade. Porque deixámos de nos informar e comunicar através de meios de intermediação falíveis e parciais, mas escrutináveis, para o fazermos em plataformas falsamente horizontais, ilusoriamente neutras e, graças à sua opacidade, muito fáceis de manipular. A democracia está a morrer porque morreu qualquer ideia de verdade partilhada por uma comunidade. Nem a verdade científica, transformada em cabala de elites, sobrevive.
Sem uma verdade partilhada, um sentido de comunidade e mediadores que estruturem a nossa vida social não há ética que sobreviva. É por isso que, no meio de um genocídio, o risonho ministro das Finanças israelita pode dizer que tem, para uma Gaza em escombros, um projeto imobiliário que pagará o investimento na carnificina. Não é que ninguém se choque. Ainda sobra passado neste presente que anuncia o futuro. Mas a alienação em que vivemos permite que a vida continue sem um sobressalto tal que os Estados europeus sejam obrigados a mais do que umas declarações simbólicas. Não é que a amoralidade supremacista seja nova. A sua exibição desabrida é que era pouco habitual. Mas a verdade foi substituída por um subproduto: a boçalidade. Se a verdade passou a ser indiferente, ser hipócrita, cimento de uma civilização em que as pessoas não se agridem quotidianamente com a expressão sem filtro dos seus sentimentos, é o pior dos crimes. Perdemos o que nos faz adultos: distinguir a realidade da fantasia e manter regras so¬ciais de contenção para não tornar a convivência num inferno.
Esta infantilização coletiva, com o endeusamento amoral do sucesso individual, é uma das causas para a ascensão de egomaníacos como Trump. Sempre houve narcisistas em todo o lugar onde está o poder. Mas, neste tempo de redes e burburinho, o povo parece ter recuperado o fascínio por mentes perturbadas. Aquelas que as ditaduras unipessoais forjavam depois de décadas de poder sem escrutínio. Se nada é realmente mentira, nada é realmente errado. Como numa ditadura, o único imperativo que sobra é a vontade do ditador.
Sou dos que acreditam que vivemos o ocaso da democracia moderna, experiência curta na história da humanidade. Sem estruturas mediadoras que enquadrem a vida social com regras, com milionários tecnológicos mais ricos do que os Estados, concentrando uma riqueza e um poder nunca vistos, com um capitalismo global financeirizado, com a Ágora ateniense transformada em Coliseu romano, com a mercantilização de todas as necessidades humanas e sem qualquer noção de futuro, por sabermos da caminhada para o inferno climático, não sei se é possível travar a queda. Mas gostava que ainda fôssemos, como os brasileiros, à luta. Mesmo que seja inútil, a mais falhada das gerações (a minha) cumprirá um dever histórico para com os que pôs num mundo que destruiu a uma velocidade sem precedentes.»

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