30.9.25

Cantigas de escárnio mal ditas

 



«No nosso Parlamento, há agora deputados que confundem a tribuna com um cruzamento mal frequentado. Um atira beijos a Isabel Moreira, directamente da Mesa. Outros preferem adjectivos baratos — “asquerosa”, “nulidade intelectual”, “miséria humana” —, ou dizer “boa noite” ao cumprimentar uma deputada negra pela manhã. E há ainda um deputado do Chega que descobriu uma nova forma de eloquência: o mugido.

É verdade que a política sempre conviveu com a sátira. E que, quando bem feita, merece memória. Cunha Simões olhou para um deputado da UDP e disse-lhe que a sua cabeça era tão grande, tão grande, tão grande que caberia lá dentro um esquadrão de cavalaria sem tropeçar numa única ideia. O plenário explodiu em gargalhadas, o presidente implorou contenção, a frase ficou escrita e, meio século depois, foi recuperada por Francisco Rodrigues dos Santos para fustigar André Ventura.

Eis a diferença. A sátira diverte até quem fere. A boçalidade é, talvez, a única arma que só dispara para trás. A sátira tem engenho, transforma a ofensa em arte, obriga até o alvo a rir-se da sua própria caricatura. A boçalidade, pelo contrário, é um peso morto. Não eleva, não convence, não arranca riso, e devolve ao orador a imagem da sua indigência de espírito.

E, no entanto, o que temos hoje é um Parlamento onde se colecionam insultos banais com a solenidade de quem julga estar a escrever epopeias. André Ventura justifica-se pelos seus deputados, diz que este estilo é apenas um espelho da “fúria dos portugueses contra o sistema”. Mas confundir um mugido parlamentar com a voz de um povo é talvez o insulto mais rasteiro que se pode fazer a esse mesmo povo. Porque um povo pode rugir, pode clamar, pode até blasfemar. O que não faz é mugir.

Convém recordar: o Parlamento existe por causa da palavra. É a palavra que distingue o debate do ruído. É a palavra que transforma adversários em interlocutores. É a palavra que separa a democracia da algazarra de feira. Sempre que a palavra cede ao insulto puro, o Parlamento abdica de si mesmo. Não é grave apenas por ser grosseiro. É grave porque renuncia ao diálogo. E quando não há diálogo, sobra apenas o choque estéril, repetitivo, vazio.

E aborrecido.

O que alguns deputados ainda não perceberam é que o talento parlamentar mede-se aqui: na capacidade de usar a palavra para abrir caminho. Na capacidade de dizer algo que obriga o outro a rir-se da sua própria posição e, nesse riso, a reconsiderar. É esse o sentido do Parlamento. É esse o sentido da política.

O que fica dito em plenário não morre no minuto seguinte: fica escrito. Fica em ata, fica em registo, fica como memória de uma geração. É por isso que o insulto inteligente ganha posteridade e o insulto pobre não resiste ao dia seguinte. O Parlamento é também isto. É um espelho do país. Quando a linguagem é banal, é a própria memória da democracia que se empobrece.

E eis o perigo maior. O tédio. Uma democracia pode sobreviver a polémicas, pode até crescer com elas. Ao que não resiste é à mediocridade repetida. É que não é só a grosseria que indigna. É a falta de talento. Porque até a insolência, quando é pobre, se torna aborrecida. E a política portuguesa arrisca-se a descobrir a pior das verdades: uma democracia não morre de escândalos.

Morre de falta de espírito.»


0 comments: