24.10.22

Von der Leyen felicita Meloni

 


«Não é estranho que Ursula Von der Leyen tenha saudado a nova primeira-ministra italiana. São relações institucionais que devem ser estabelecidas e mantidas. Mas seria fundamental que tivesse escolhido as palavras. Temos uma líder num país europeu que é de extrema-direita xenófoba e admiradora de Mussolini. O elefante está na sala. Como lidar com isto? Von der Leyen tomou a dianteira; felicitou Meloni pelo seu novo cargo e destacou o facto de ser a primeira mulher a assumir essa posição em Itália.

A declaração de Von der Leyen foi duplamente infeliz. Por um lado, ignorou olimpicamente que Meloni concretiza uma ameaça, uma afronta até, aos valores do chamado projeto europeu, passando a todos a mensagem de que se tratam afinal de valores de importância relativa. A primeira-ministra italiana foi militante de grupos neofascistas desde a adolescência. São conhecidas as suas posições contrárias ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, contrárias à imigração, contrárias ao aborto, etc. Pois nada disso transparece na felicitação que recebeu da presidente da Comissão Europeia.

Por outro lado, Ursula Von der Leyen conseguiu apequenar a causa feminista enquanto, supostamente, a enaltecia. Felicitar Meloni por ser mulher e por, enquanto mulher, chegar a primeira-ministra, não é feminismo. É sim uma ofensa à causa e a quem se bate por ela.

O feminismo não é uma causa cega. Está agregada ao osso dos ideários políticos fundamentais e, já agora, ao bom senso. Não precisamos de uma representação feminina em todas as áreas e o facto de ser uma mulher a destacar-se naquilo que devemos combater não é certamente uma razão de orgulho. Há mais homens condenados pelo crime de corrupção do que mulheres e, nessa diferença, não existe um motivo para incentivarmos a que mais mulheres tomem as rédeas na matéria.

Também Hillary Clinton tinha feito uma declaração miserável a propósito da eleição de Giorgia Meloni: “A eleição da primeira mulher primeira-ministra de um país representa sempre um corte com o passado e isso é certamente positivo.” Ficamos esclarecidos relativamente ao entendimento que estas mulheres têm da causa feminista.

É preciso cuidado com o feminismo que se despegou da luta por um modelo socioeconómico justo ou, pelo menos, da luta contra as desigualdades. Porque deverão as mulheres sentir alguma espécie de satisfação por chegar ao poder uma pessoa que usou como slogan o patriarcal “Deus, pátria e família” e que não reconhece os direitos de milhares de mulheres que integram minorias e que chegam à Europa em busca de trabalho e de uma vida digna?

Foi a esquerda que abriu este flanco. É a esquerda que tantas vezes aceita confundir-se com as lutas progressistas desintegradas da grande luta dos trabalhadores ou, para quem não tiver medo do nome, desintegradas da luta de classes. É um feminismo que deixa para trás as mulheres que mais precisam dele e que se fixa nas vitórias de umas quantas que chegam ao poder. O culto das vencedoras e da meritocracia. Como se não soubéssemos todos que as condições socioeconómicas são um impostor que altera por completo a lógica da discriminação e do preconceito. Uma mulher racializada é potencialmente vítima de preconceito racial, de género e de classe. Tudo se altera se for rica.

Foi na esquerda que tiveram início as lutas progressistas, mas, quando a esquerda se esgota nessas lutas – esquecendo as suas origens de luta por um modelo socioeconómico – eclipsa-se e sobretudo abre as portas a que todos se apoderem delas. Não bastava o feminismo neoliberal, chegámos ao dia em que a própria extrema-direita se arroga com créditos na luta das mulheres e temos uma presidente da Comissão Europeia que nos faz embarcar nessa narrativa.

Giorgia Meloni é mulher. Nisso, tem tanto mérito como culpa: zero. O mesmo número que está inscrito na dívida da causa feminista para com ela. Não existe nenhuma razão para estarmos contentes por uma mulher de extrema-direita ter chegado a primeira-ministra. Mais valia um homem decente.»

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