24.5.25

A desesperança, a solidão e a ignorância que alimentam o Chega

 


«Há muito tempo que falo do papel do ressentimento na vida política actual, sem grande sucesso. Agora parece que as coisas estão a mudar. Não era uma categoria muito referida, em particular quando coloco o ressentimento como tendo substituído a “luta de classes” ou, se se quiser, o conflito social. Parece que agora mesmo Ventura usa essa classificação para se referir aos seus resultados eleitorais.
 
O ressentimento é uma atitude vista como negativa, em particular quando falamos das suas manifestações individuais. Mas o ressentimento é também uma atitude social, presente em todos os movimentos de protesto, à esquerda e à direita, e traduz a sensação de perda, de desesperança, de impotência, de que ninguém nos ouve, de revolta perante casos reais ou imaginários de malfeitorias dos “outros”, começando no vizinho e acabando no Presidente, ou de exclusão e desigualdade e injustiça. É um poderoso sentimento que no passado sempre existiu, mas que encontrava expressão na luta social, em manifestações, protestos, sindicatos, grupos e partidos que funcionavam como mediadores e, nesse sentido, se integravam nos mecanismos de funcionamento das democracias.

O mapa eleitoral do Chega é muito parecido em várias partes do país com o do PCP, e há uma coisa em comum que facilita esta semelhança. Trata-se de zonas onde antes o ressentimento dava votos ao PCP, e agora a mesma raiva face à vida dá votos ao Chega.

A maioria das pessoas não tem a vida que desejaria ter. A esperança torna-se rapidamente desesperança. Não é de agora, pode-se quase dizer que é de sempre, mas agora há vários mecanismos de massa que dão densidade a essa desesperança e que facilitam que ela tenha uma expressão política no populismo. O predomínio do Pathos, face ao Logos e ao Ethos, cria um mundo impregnado de emoção, muitas vezes superficial, mas muito eficaz face ao fracasso do ensino, em permitir um vocabulário que não seja gutural, e a uma ignorância cada vez mais institucionalizada numa forma agressiva. Eu não li esse livro, nem vi esse filme, mas li um post que fala dele e, por isso, posso também dar a minha opinião, que tem o mesmo valor da desses “intelectuais” da “bolha”, ou de gente que passou a vida toda a estudar esse assunto.
 
Todo o mundo televisivo transformado em reality shows e a imprensa tablóide desaguam nas chamadas redes sociais, que são um grande polarizador deste sentimento de esperanças traídas, de uma forma que as radicaliza e as torna um espelho de antagonismos.

É um dos mecanismos que maior erosão traz às democracias porque é interior, não vem do confronto entre a tirania e a democracia, dissolve os mecanismos de intermediação e representação, cria um pseudo-igualitarismo e permite que se veja, se leia, se entenda apenas aquilo que funciona como um espelho das nossas opiniões e sensações. É um muito eficaz mecanismo de polarização e radicalização, gera o confronto entre “nós” e “eles” e dá à companheira da desesperança, a solidão, uma impressão de força.

Este é o terreno ideal para a manipulação das massas. Todos os serviços de informação dos regimes totalitários sabem isso, sabem como manipular as pessoas, sabem como condicionar eleições, como atacar um político ou um partido e promover outro. Há também empresas que o sabem fazer e fazem-no para os seus clientes, para acabar com o restaurante que compete com o “meu”, para arrasar um hotel, para colocar na moda um produto ou tirar da moda outro. Esta densificação da desesperança, da solidão diante de um ecrã, da falsa sensação de companhia e de que, como escrevo no Facebook ou no X, ou faço um meme numa rede social, a minha voz passou a ter um valor que eu não tenho ao meu lado, no emprego, no namoro, no café. E é fácil encontrar no “outro” a culpa do meu insucesso.

Esta densificação do ressentimento acaba por ser um processo que acompanha vários movimentos de democratização, traduzidos no consumo de massas, no acesso ao ensino, numa vida de facto melhor do ponto de vista material, tudo factores muito positivos que tiveram o papel de aumentar as expectativas e as exigências. Mas os efeitos perversos desses processos criaram sociedades com novas formas de solidão, um individualismo triste, um psicologismo “mental”, acompanhado de uma incapacidade de acção colectiva, e mais ignorante. A ignorância das “gerações mais bem preparadas” é também nova face à antiga ignorância, que sabia que precisava de saber mais. A de hoje acha que meia dúzia de memes chega para conhecer tudo, opinar sobre tudo e que não é preciso ler livros.

Orwell, no 1984, sabia como isto funcionava e dependia da cultura no sentido lato, e mostrava como o Big Brother reduzia todos os anos o número de palavras circulantes, porque quem não tem capacidade expressiva não fala bem e é incapaz de traduzir raciocínios complexos, vive imerso num psicologismo superficial e é mais fácil de mandar.

Desesperança, solidão e ignorância são a chave.

(Para outra altura fica a análise de como a esquerda não percebeu nada do que se estava a passar, e se deixou distrair pelas chamadas “causas fracturantes”, numa guerra cultural que perdeu e alimentou o adversário, num elitismo radical chic em que abandonou os “seus”.)»

0 comments: