17.11.22

A beatitude das mentiras do clima



 

«A mobilização dos jovens que em Portugal exigem medidas climáticas concretas, como noutros países, tem recebido duas respostas típicas: a condescendência, que giros que são, e a descompostura, afinal não percebem que tudo está no bom caminho. É-lhes oferecida a satisfação com a encenação das conferências anuais e com as declarações beatíficas aí produzidas, que tem feito caminho desde o Acordo de Paris e é o mantra atual – o capitalismo sabe resolver o problema e o mercado é o seu profeta. Por isso, o contraste da voz desesperada de António Guterres vai-se tornando mais notório: diz ele que estamos a caminho do abismo e a manter o pé no acelerador, apontando aos principais governos o crime de estarem a mentir aos seus povos e, ao fazê-lo, parece simplesmente um homem só, o único naquelas reuniões a desprezar os discursos e as promessas com que se espera que sejamos entretidos. Quem havia de dizer que, neste sinal dos tempos, um dos mais moderados políticos mundiais se mostraria tão exasperado e sinceramente zangado com a fraude em que se tornaram as políticas climáticas. Tem razões para isso e, já agora, essa é a motivação dos jovens que protestam.

A dimensão desta mentira pode ser ainda maior do que se supõe. Na Cimeira do Egipto, Catherine McKenna, uma ex-ministra canadiana que chefia o observatório da ONU sobre os Compromissos para Emissões-Zero, apresentou um relatório devastador sobre duas mil das maiores empresas do mundo, que afirmam compromissos de emissões-zero. Só que, diz ela, 93% dessas empresas não atingirá nunca o objetivo com as suas medidas previstas. Uma consultora, a Accenture, registou os casos generalizados de “apresentação desonesta de contabilidade” de emissões, em alguns casos mascarando a promoção de novos investimentos em combustíveis fósseis. Ainda sobre o comportamento das maiores empresas, a revista “The Economist” cita um relatório que identifica 1200 grandes empresas de 12 países que afirmam ter metas para a redução de emissões, mas não as revelam. Há ainda o caso da contabilização falsificada da redução de emissões por países onde já se generalizou o automóvel elétrico, mas que não contam o efeito emissor da sua produção importada ou da destruição posterior das baterias.

Com tudo isto, chegamos ao único resultado que não é possível disfarçar, o planeta já aqueceu 1,2ºC em relação à média pré-industrial e, considerando o efeito de inércia dos processos climáticos, já não é possível restringir o impacto aos prometidos 1,5ºC, mesmo que houvesse agora um travão total à produção de emissões. Segundo o IPPC, para que os 1,5ºC fossem cumpridos, só se poderiam ter emitido mais 2890 milhares de milhões de toneladas de dióxido de carbono, mas até 2019 chegou-se aos 2390 milhares de milhões e desde então foram acrescentadas mais 120, pelo que este caminho é agora irreversível. Afirma a mesma instituição da ONU que seria necessário o triplo do investimento em energias limpas para permitir o travão das emissões, o que demonstra simultaneamente que era possível e que a solução será bloqueada.

Há duas razões para este bloqueio. A primeira é mesmo o mercado: estão instalados na COP27 603 lobistas das empresas mais poluentes, são mais do que os dos dez países mais afetados pelas alterações climáticas. São um poder e um poder excessivo (será preciso lembrar que, por regra internacional, os representantes das empresas do tabaco não podem ter acesso a reuniões internacionais sobre normas para a saúde?). A segunda razão é ainda o mercado: os governos mais poderosos incentivam a corrida ao fóssil, em particular ao gás, o governo dos EUA criou recentemente um sistema de financiamento para a compra de autorizações de emissão a países mais pobres, de modo a aumentar as suas próprias emissões, a Espanha e Alemanha retomaram a produção de carvão, e a lista continua. Este é o pé no acelerador que Guterres denuncia. O mercado funciona e o caminho para o abismo está cheio de consoladores lucros e dividendos.»

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