19.11.22

O futuro do ambiente está na China, não na COP27

 


«1. Vivemos num mundo em profunda transformação e cheio de contradições. Provavelmente a Ásia será o centro económico do mundo no século XXI, apesar da persistência de uma substancial pobreza nesta. As implicações económicas e geopolíticas dessa transformação são múltiplas. Traz consigo uma consequência crítica: não há solução para o problema ambiental, nem para a transformação energética, sem os Estados asiáticos mais populosos e importantes economicamente. Põe em causa, pelo menos em parte, a imagem que o Ocidente tem de si próprio sobre a sua capacidade de influenciar o mundo. Todavia, essa realidade está patente no relatório do Centro Comum de Investigação de 2022, do serviço de ciência e conhecimento da Comissão Europeia sobre as emissões de CO2. Pode ler-se aí que as emissões da China em 2021 foram 32,9% das emissões globais, quando em 1990 a sua percentagem era de 10,7%, ou seja, esta passou de cerca de 1/10 para quase 1/3 das emissões globais de CO2.

Quanto à Índia, atinge agora um valor de 7% das emissões globais totais de CO2, sendo a quarta maior economia emissora depois da China, dos EUA (12,6%) e da União Europeia e com um valor quase igual a esta última, que é de 7,3%. De notar que nos dez primeiros emissores de CO2 a nível global oito são economias asiáticas — para além da China e Índia, Japão, Irão, Coreia do Sul, Indonésia e Arábia Saudita — ou euro-asiáticas, caso da Rússia. No caso da União Europeia, apenas a Alemanha surge ainda na lista dos dez maiores emissores de CO2.

2. Para além das emissões de CO2 em termos absolutos, é necessário considerar as emissões per capita (por habitante) de CO2. Aí a realidade é outra e aponta para a responsabilidade actual e histórica do Ocidente, complexificando a solução. Os casos da China e da Índia — os dois Estados mais populosos do mundo, ambos com uma população que supera os 1,4 mil milhões de habitantes, num planeta que atingiu os 8 mil milhões — mostram isso inequivocamente. No caso da Índia, as emissões per capita são cerca de quatro vezes inferiores às do conjunto da União Europeia e sete vezes inferiores às dos EUA. No caso da China, que compete com os EUA pela supremacia global, as emissões per capita são menos de metade das emissões dos norte-americanos. No topo mundial das emissões per capita de CO2 — e até acima das economias ocidentais — estão os países ricos do Médio Oriente, como a Arábia Saudita, o Qatar, ou o Kuwait, os quais são não só grandes produtores de combustíveis fósseis como consumidores intensivos destes.

Se as discrepâncias de CO2 per capita são enormes e dificultam uma abordagem global equilibrada, quando entramos no terreno das injustiças históricas o problema adensa-se ainda mais. A questão do passado, da revolução industrial inventada pelos europeus e ocidentais, que até inícios do século XXI foram os maiores poluidores do planeta, leva a olhar o mundo de formas muito divergentes. Para os ocidentais, especialmente para os europeus, o ambiente tende a estar no topo da agenda política, apesar da invasão russa da Ucrânia lhe ter retirado visibilidade e prejudicar, pelo menos no imediato, a transição para uma economia verde. Para o Sul global, as questões da pobreza, da saúde pública e do desenvolvimento em geral são as prioridades que se impõem.

Ao mesmo tempo, o Sul global reclama compensações financeiras para transitar para uma economia descarbonizada — e também devido às catástrofes ambientais que tem sofrido — que os europeus e ocidentais não querem dar, ou não podem dar, pelo menos na dimensão e forma que esses países pretendem.

3. Seja qual for o desfecho da COP27 (Conference of the Parties), não são expectáveis avanços de relevo em compromissos globais dado o actual contexto geopolítico adverso e a complexa crise energética em curso. Mas não é só esse o problema. Importa aqui lembrar que os compromissos ambientais até agora existentes são largamente baseados em Contribuições Nacionalmente Determinadas, as quais são voluntárias por natureza. Assim, é necessário perceber bem o que se pode esperar destas cimeiras.

Pela positiva, têm o grande mérito de colocar a questão ambiental no centro da agenda política, de colocar todos a falar com todos para resolver um problema que é da humanidade e de indicar um caminho conjunto. No entanto, é necessário compreender igualmente as suas (muitas) limitações. Para além do carácter voluntário, para além da enorme dificuldade de consensualizar decisões entre quase duzentos Estados, há uma questão crítica que nenhuma COP irá alguma vez resolver, pois está no plano das rivalidades geopolíticas.

É necessário ter claro que todos os actores centrais na transição energética — China, EUA, União Europeia e Índia, aos quais se juntam os grandes produtores de combustíveis fósseis do Médio Oriente e a Rússia —, tomam decisões não só em função do planeta (ainda que queiram dar essa ideia), mas dos seus interesses. Assim, são incontornáveis as questões dos ganhos e perdas em termos económicos, do poder e da autonomia estratégica.

4. A extraordinária transformação da China — e também da Ásia em geral, em particular da Índia, ainda que mais lenta — tornaram-na crucial na solução do problema ambiental global, num duplo sentido. Num primeiro sentido (pela negativa) porque só a China, como vimos anteriormente, representa quase 1/3 das emissões globais de CO2. Comparativamente, os EUA e União Europeia juntos representam cerca de 1/5 das emissões globais de CO2.

Os números mostram bem a importância da China para qualquer solução global. Num segundo sentido (agora pela positiva) porque, paradoxalmente, é também na China onde a economia verde está mais avançada, tendo um peso esmagador a nível mundial, pelo menos nesta altura. Como notou Graham Allison, professor da Harvard Kennedy School, “o facto bruto é que a China é o principal fabricante e exportador mundial de todas as tecnologias verdes. É o principal fornecedor global de veículos eléctricos, com uma quota de 40% do mercado, tendo também 40% nas turbinas eólicas e 35% no hidrogénio verde. Produzia menos de 1% dos painéis solares em 2000, mas agora a China fornece 80% dos painéis solares globalmente.” (Ver Will America’s green future be Red? in Boston Globe, 29/10/2021).

Assim, sem surpresa, também no plano ambiental, a competição China-EUA — e, neste caso, sobretudo o que fizer futuramente a China pelo seu duplo impacto no planeta — vai ser fundamental para o futuro do ambiente e a economia verde.

5. Num planeta à beira dos seus limites, a mudança para um novo modelo de economia sustentável é uma questão crítica para o futuro comum da humanidade. A COP27 tem um papel de lembrar isso ao mundo e de apontar o caminho da preservação ambiental. Todavia, a transformação energética terá também impactos profundos no bem-estar económico e na distribuição de poder. Vai gerar uma nova competição pelos recursos da economia verde, desde o lítio aos elementos de terras raras que irá fazer lembrar, sob outras formas, o que vemos no actual modelo de combustíveis fósseis. Num mundo ideal e justo isso não existiria.

Os Estados e outros intervenientes políticos e empresariais decidiriam por imperativos de preservação ambiental e de justiça climática, de forma cooperativa e aberta. Evitariam rivalidades geopolíticas e recusariam a ambição de se tornar um poder dominante. Todavia, esse mundo não existe. Aquilo a que assistimos é a crescentes rivalidades e tensões geopolíticas. Urge, por isso, encontrar as melhores soluções ambientais no quadro do possível e não do utópico.

Há duras realidades para a Europa enfrentar. A primeira, é que sem a cooperação dos países produtores de combustíveis fósseis do Médio Oriente (e que vão querer ganhos geopolíticos e outros em troca), uma transição sem choques energéticos será provavelmente impossível. A segunda é que o futuro das questões ambientais globais está largamente na Ásia e sobretudo na China (e na sua cooperação com os EUA), e não tanto em fóruns globais, o que explica a ausência de Xi Jinping (e de Narendra Modi da Índia) da COP27.»

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