«Não costumo voltar ao mesmo tema tão cedo. Mas a sinistra viagem das três mais altas figuras do Estado ao Qatar inspirou-me. Que fique claro: esta viagem não resulta de protocolo nenhum. As equipas portuguesas participam em várias competições internacionais sem o apoio in loco das mais altas insignes do Estado. Portugal, campeão mundial de hóquei em patins em título até ao passado domingo, perdeu a final do campeonato do mundo contra a Argentina e não consta que qualquer dos três ilustres tenha acompanhado os jogadores.
O Democracy Index de 2021, da revista The Economist, analisa a qualidade da democracia recorrendo a 60 itens, agrupados em cinco prismas. O primeiro é o processo eleitoral e o pluralismo (Qatar: 1,5 pontos). O segundo é o funcionamento das instituições (Qatar: 4,9 pontos). Segue-se a participação eleitoral, interesse da população na política, direitos das minorias e das mulheres (Qatar: 3,33 pontos). Depois, vêm as perceções da população sobre a democracia e o poder do exército (Qatar: 5,63 pontos). Last, but not the least, estão as liberdades de imprensa, de expressão, de associação, de acesso à internet, entre outras; nesta categoria, o Qatar logra uns estonteantes 3,53 pontos.
Assim, de um total possível de dez pontos, o Qatar obtém 3,65, conquistando a 114.ª posição, de entre os 167 países analisados. Como termo de comparação, a Hungria de Orbán, justamente ameaçada de perder acesso a 7,5 mil milhões de fundos europeus por violação do Estado de direito, está em 56.º lugar neste índice.
Estima-se que há cerca de dois milhões de trabalhadores imigrantes no Qatar. A legislação laboral que prevalecia até outubro de 2020 era esclavagista, porque inibia os trabalhadores de mudarem de emprego ou de saírem do país sem autorização do empregador. A falta de direitos explica o número de mortos e estropiados. Os cálculos do The Guardian apontam para 6500 mortes de trabalhadores migrantes entre 2011 e 2020, a OIT fala de 50 diretamente ligadas às obras do Mundial e o governo do Qatar de 37.
Pode morrer-se do trabalho sem ser no trabalho; um artigo publicado em 2019 concluiu que as mortes por crise cardíaca entre os imigrantes nepaleses no Qatar eram “com elevada probabilidade devidas a stress térmico severo” (ler: trabalho físico escravo sob altas temperaturas do deserto). A fraca qualidade da informação sobre as causas de morte, que tanto o The Guardian como os autores deste artigo apontam, é em si mesma sinal de que as vidas destas pessoas valem pouco para as autoridades qataris.
A lei foi alterada, mas a prática não. Um ano depois da reforma, o Reality Check 2021 da Amnistia Internacional (AI) rezava assim: “A aparente complacência das autoridades deixa milhares de trabalhadores em risco contínuo de exploração por empregadores sem escrúpulos, muitos impossibilitados de mudar de emprego e enfrentando diminuições arbitrárias e punitivas de salário.”
No Qatar, a homossexualidade é proibida. As pessoas LGBTQI+ são vítimas de maus tratos, tortura e detenções arbitrárias pelas forças de autoridade. Há “agentes infiltrados” para bufar os outros, que podem acabar na prisão. As mulheres têm guardiões masculinos que decidem a sua vida. A punição física (chicotadas) é uma pena normal. Aliás, o tabloide britânico The Sun avisou recentemente os adeptos que se desloquem ao Qatar de que podem ser chicoteados ou presos por comportamentos normais como beber, tirar fotografias ou usar linguagem obscena. De resto, os visitantes estão avisados para respeitar a cultura local: nada de manifestações de carinho público, muito menos entre pessoas do mesmo sexo, ou mulheres vestidas como querem.
Se o Qatar é o que é, a FIFA não é melhor. O Mundial foi atribuído através de luvas pagas aos responsáveis com direito de voto, que já deram origem a vários processos judiciais. Na sua infinita hipocrisia, a FIFA afirma que está a trabalhar com organizações locais para promover os direitos dos trabalhadores, mas, quando confrontado com o número de mortes, o seu presidente papagueou a estatística oficial do governo do Qatar (como escrevi há duas semanas). A FIFA não permitiu que os jogadores da Dinamarca usassem no equipamento mensagens alusivas aos abusos. De tão preocupada, não responde ao apelo da Amnistia Internacional, que, junto com várias ONG, anda há seis meses a pedir uma compensação para os trabalhadores incapacitados e para as famílias dos mortos.
A FIFA faz ouvidos de mercador. As contas são simples. O Qatar gastou 200 mil milhões na construção de estádios e outras infraestruturas. A FIFA deverá ganhar seis mil milhões com o campeonato. A AI está a pedir 400 milhões para os mortos e estropiados. E eles não aparecem.
A Carbon Market Watch, um think-tank ambiental que trabalha, entre outros, para a Comissão Europeia, avisou que a neutralidade carbónica reivindicada pela organização do Qatar 2022 é “rebuscada e espúria”. Os autores do relatório explicam que os cálculos dos organizadores não atribuem a construção dos seis estádios ao Mundial, optando por espalhar o seu custo ambiental ao longo da sua vida útil, estimada em mais de 50 anos. Desta forma, dividiram por oito a pegada carbónica. Depois, os organizadores gabam a proximidade geográfica entre os estádios como causa de menos viagens, mas, na prática, haverá mais de 160 voos diários para transportar pessoas para o Qatar, dada a reduzida capacidade de albergue do país. E depois há a jactância dos estádios climatizados. Se argumentos faltassem.
Como escreveu Luís Aguiar-Conraria há umas semanas no Expresso: “Ficava-nos tão bem boicotarmos a porcaria do Mundial de futebol.” Só que boicote não houve. Resta-nos um boicote caseiro, que consiste em não ver nem ouvir. Os anunciantes que metem milhões nos bolsos da FIFA esperam muitos olhos fixados no estádio no dia dos jogos. É pura utopia, mas imagine all the people a olhar para outro lado.
Carlos Moedas e Rui Moreira dão um empurrãozinho a esta utopia: à semelhança de Paris, Lille, Estrasburgo, Reims, Bordéus e Marselha ou Londres, não haverá Fan Zones em Lisboa nem no Porto. Não sabemos se esta decisão se deve às cartas que os dois edis receberam da Frente Cívica, mas também não importa: a decisão está tomada e saúda-se.
Já não se saúda a anunciada viagem ao Qatar de António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa e Augusto Santos Silva. Subscrevo a carta dirigida às três figuras cimeiras do Estado pelo presidente e pelo vice-presidente da Frente Cívica, Paulo de Morais e João Paulo Batalha, na qual lhes apelam para que não se desloquem ao Qatar. Explicam que “Portugal é mais do que uma equipa de futebol ou um evento desportivo” e consideram “imorais e ilegítimos quaisquer gestos de legitimação, e até de celebração”, da “barbárie civilizacional” que é o Qatar 22. Vamos lá ver se nos entendemos. Marcelo, Costa e Santos Silva não são uns adeptos quaisquer. São o Presidente da República, o primeiro-ministro e o presidente da Assembleia da República de Portugal. A sua viagem ao Qatar legitima a lavagem desta monarquia arcaica e repressiva, em nosso nome. Se não têm eles vergonha, pensem na nossa e fiquem em casa.
P.S.: Terminei este texto antes das declarações de Marcelo Rebelo de Sousa sugerindo que esqueçamos o desrespeito pelos direitos humanos do Qatar e nos concentremos na seleção. Se dúvidas houvesse quanto à intenção de lavagem do regime, desapareceram. Boa viagem, Presidente Marcelo.»
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1 comments:
Olhando para os direitos humanos atravez da FIFA ou UEFA, e fazer o que se fez com a Russia, suspender a Federação Russa, por causa dos direitos humanos, poucos países de África, médio oriente e Ásia, podiam entrar no futebol.
E por causa dos "emigrantes", a Europa e América, não sabemos quantos sobrariam.
Marcelo talvez arranje muitos argumentos para ir à bola!
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